Depois do Antes

30/07/2014

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Revista NOIZE

Por: Revista NOIZE

Fotos:

30/07/2014

Fotos: Ariel Fagundes

Há uma frase bonitinha atribuída a Albert Einstein que vi se popularizar recentemente: “Viver é como andar de bicicleta: É preciso estar em constante movimento para manter o equilíbrio”. Apanhador Só, a “banda da bicicletinha”, parece intuitivamente ser um exemplo prático da regra. É quase à revelia dos integrantes que as canções do disco mais recente ganham novos arranjos nas versões ao vivo, sempre em construção. A prática constante faz da mutação algo inevitável, orgânico, que transforma a repetição em novidade, posto que nenhuma execução é igual.

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Mesmo com o repertório quase idêntico, as duas apresentações realizadas domingo (27/07) no Theatro São Pedro, em Porto Alegre, para celebrar o recém-prensado vinil de Antes que tu conte outra (2013) foram dois shows completamente diferentes. Na execução de “Nado”, por exemplo, quando o publico é convidado a subir ao palco, a apresentação das 18h contou com fã ajudando o compositor a cantar diante de um público silencioso. A das 21h, com uma plateia tão empolgada e efusiva no auxílio com os ruídos da canção quanto os integrantes, sempre empenhados em não permitir que a constância subtraia o inesperado do improviso.

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A já tradicional performance colaborativa de “Nado” provavelmente teve início em 13 de maio do ano passado, no mesmo teatro. Era o show de lançamento de AQTCO e os ingressos da primeira sessão haviam sido distribuídos aos apoiadores do disco no Catarse. Quando o público subiu ao palco, era nítida a metáfora para o financiamento coletivo, mas, mais do que isso, era materializada a leveza da comunhão entre público e banda que a Apanhador parece manter sem nenhum esforço (tanto que estranhei quando digitei o termo “fã” no parágrafo acima). Enquanto escrevo, penso em como tanta gente deve sentir essa proximidade amiga da mesma forma que sinto. Eu que, há um ano, estupefata e imóvel na cadeira, era puxada pelo calcanhar pelo show depois de ter levado uma rasteira do disco, jamais imaginaria que teria a responsa de editar 12 meses depois a NOIZE #65, cujo tema é justamente “Antes que tu conte outra”, o primeiro disco de vinil lançado no projeto NOIZE Record Club.  O tempo, esse fluxo constante e por vezes enlouquecedor de cadenciado movimento, sempre trata de nos surpreender.

Todo cambia

No ano passado, o esforço da banda era em fidelizar a apresentação aos complexos arranjos mostrados no disco, e a fúria impactante de cada canção (em especial a de abertura, “Mordido”) fez eu me segurar para não me entregar à catarse em meio ao clima comportado do mais antigo teatro de Porto Alegre. Desta vez, pouco mais de um ano depois, não se viam espectadores sentados, ao menos nos camarotes (para meu alívio), e “Mordido” não foi a canção de abertura, mas ganhou uma projeção do vídeo que rodou o mundo no fim de 2013 e transformou a canção em um hino da resistência contra as obras, as remoções e as repressões da Copa no Brasil.

O vídeo, assinado pelo coletivo Tatu Morto, é uma amostra de que bastante coisa mudou desde o lançamento de AQTCO, e Alexandre começou o show justamente fazendo esse balanço. “Muita coisa aconteceu de um ano pra cá”, divagou, traçando um paralelo entre o que se passou nas ruas e o trabalho da banda. Se as músicas de outros álbuns há um ano ficavam para o fim do show, agora elas se integram à performance – e algumas das antigas criam um contraste instigante com o repertório mais recente e experimental. Entretanto, isso não parece dividir o público – bastante jovem, a propósito. Na primeira sessão, a que fez todo mundo cantar junto foi “Vitta, Ian, Cassales”, em uma versão mais acelerada, quase impaciente. “Despirocar”, com a troca de instrumentos e a condução insana, de tão ligeira me fez relaxar os ombros no último acorde. Se não senti em “Mordido” a mesma fúria de 2013, a tensão de faztempoeutocomaziatdurmomaltenhoalergia me foi bem-vinda.

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“Paraquedas” e “Salão de Festas”, do compacto em vinil 7 produzido por Curumin e Zé Nigro, tiveram as execuções mais delicadas e exuberantes da noite. A primeira, monocórdica e lindamente conduzida ao clímax, à queda livre que antecede o baque, me comoveu. Cheguei à conclusão de que, seja cantando o eterno drama de um velho amor ou tocando um instrumento como quem cerra os dentes diante de uma injustiça, uma banda independente sabe manter acesa a chama da paixão. Não se acomoda no conforto e segurança castrantes oferecidos pelo casamento com um bom partido ou uma gravadora estéril.

Volver a los 17

Eu devia ter uns 17 anos quando conheci a Apanhador, ainda estudante do segundo grau. Era pra ver principalmente Superguidis (que deus a tenha) e Stratopumas que eu rumava ao Tear (hoje OX, anexo ao bar Ocidente) em boa parte dos finais de semana da minha vida de jovem faceira e um pouco ingênua por se sentir vivendo a música dos anos 2000. Lembro de um show em que a banda foi a primeira a subir ao palco e a delicadeza das canções fez todo mundo parar pra ouvir. Enquanto tantos alimentam satisfeitos os ouvidos com nostalgia, eu sempre gostei de fincar o pé no presente, talvez por uma ânsia de me sentir parte do que acontece, talvez por um tipo de síndrome de Peter Pan que faz eu me identificar com boa parte da produção musical dos meus colegas de juventude. Um estado de espírito, “o melhor lugar do mundo é aqui e agora”.

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A real identificação com a banda veio bem depois (mas com aquele carinho bairrista de “te vi crescer”) e começou mais política do que musical. Com as intervenções acústico-sucateiras, vi o grupo como fundamental no movimento Largo Vivo, pioneiro por manter popular o Largo Glênio Peres, espaço importante de convivência de Porto Alegre que o poder público insistia em “desdemocratizar”. Proibiu as tradicionais feiras e manifestações e bateu o pé para transformá-lo em estacionamento a fim de, nas palavras de um dos secretários do governo da época, trazer um público mais qualificado ao Mercado Público. A ânsia de manter intactas as coisas boas da cidade diante de iniciativas muito mais inclinadas ao privado (a pequenos grupos endinheirados) do que ao público (ao povo) se converteria em uma força transformadora – o desejo de não deixar a Porto Alegre marginal morrer fazendo com que o novo germinasse. O mesmo Largo, alguns anos mais tarde, seria um cenário fundamental para a concepção de Antes que tu conte outra (na matéria “Antes do Antes”, na NOIZE #65, o repórter Leo Felipe conta toda a história).

No disco homônimo de 2010, responsável por posicionar a banda em um lugar de destaque no cenário indie nacional, sentia que se cantavam os amores cujo prazo de validade está prestes a expirar. Havia uma singela melancolia, mansinha e acalentadora. Independente do barulho e do peso eventual, me era som de colo, de cafuné, de sorriso com gosto de lágrima. Um disco de uma banda que começava a se tornar adulta, talvez, e a lidar com as exigências da maturidade, de fazer o troço pra valer, levado a sério, com aquele compromisso inexorável à ânsia pela liberdade. A diferença entre Apanhador Só e Antes que tu conte outra também mostra uma certa fluidez: é parte de um processo em que a caminhada como indivíduos é indissociável à trajetória como banda (como o próprio Alexandre Kumpinkski conta no “Faixa a Faixa” na revista).

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Quando AQTCO foi lançado, onde tantos encontraram incômodo, outros encontraram conforto. Foi como um “tu não tá sozinho” pr’aqueles que brigaram com família, colegas de trabalho, cobradores de ônibus e senhores na fila do banco em diversos pequenos grandes acontecimentos dos anos anteriores na cidade. No meu caso, foram pelo menos uma centena de discussões contra as ocasionais defesas a Ricardo Neis (o cara que atropelou todo mundo naquela Massa Crítica de 2011), contra os xingamentos às mulheres que foram de peito aberto à Marcha das Vadias de 2012 (a primeira a contar com um número expressivo de participantes) ou finalmente contra as defesas ao tatu de plástico da Coca-Cola quando uma manifestação pacífica terminou em pancadaria graças à delinquência de uma polícia militarizada.

E eu, que sempre ansiei por viver a música do meu tempo, ouvi um disco cantar a angústia da resistência da pequena província em que vivo e, ao mesmo tempo, traduzir um sentimento coletivo, nacional, mundial, humano, maior. O ingresso do show do dia 13 de maio de 2013 no Theatro São Pedro ainda estava guardado na carteira quando voltei ao São Pedro no domingo passado.

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No domingo, escutamos AQTCO pelo menos meia dúzia de vezes de manhã, enquanto embalávamos os discos de vinil dentro do encarte, do outro encarte e da capa. Depois, foram mais algumas dezenas de viradas do lado A para o lado B e do lado B de volta ao lado A no toca-discos enquanto recebíamos os ansiosos fãs da banda em um quiosque improvisado no saguão do teatro. Mas mesmo depois das performances ao vivo (assisti ao primeiro show e a metade do segundo) coroando um dia dedicado a esse álbum do coração, não eram as canções de Antes que tu conte outra que estavam na minha cabeça enquanto eu rumava para casa, exausta. E, sim, duas canções célebres na voz de Mercedes Sosa: “Todo cambia” e “Volver a los 17”.

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“Todo Cambia” porque tudo muda. Nossas inspirações. Nossas certezas. Nosso amor, mesmo quando não é uma garrafa de vinho virando vinagre devagarinho. A paisagem ao redor de quem pedala. As músicas quando tocadas ao vivo. A voz de alguém quando se torna um coro, integrada a outras vozes (mas ainda audível, sem se deixar anular na multidão).

“Volver a los 17” porque as canções que nascem do lado de dentro não envelhecem, mesmo renovado o repertório. Volver a los 17 porque basta ouvir uma música amada pra sentir o já sentido mil vezes igualzinho à primeira vez que foi sentido – como a vertigem que faz com que se anseie pelo novo ao invés de teme-lo. Os motivos para lutar mudam, os motivos para cantar também. O idealismo – artístico, político, social – é que é a utopia que nos mantém em movimento. No último domingo, encerrou-se, para mim, um ciclo. Mas o álbum vai permanecer girando no toca-discos enquanto houver gente para significá-lo.

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30/07/2014

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