As múltiplas facetas de Tulipa Ruiz

18/11/2014

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Nicolas Henriques

Por: Nicolas Henriques

Fotos: Nicolas Henriques

18/11/2014

Quando entrei no Grand Metrópole na sexta, esperava aquele ambiente bizarramente lotado, levemente claustrofóbico que foi último Sexta Básica, com a Céu e a OBMJ. Ao pensar nessa possibilidade sufocante, imaginei como seria difícil escrever qualquer resenha, chegar perto dos cantores para tirar umas fotos maneiras ou qualquer outra coisa que lembrasse minimamente a minha função naquele show. Mas, às 23h40, o Grand Metrópole ainda estava bem vazio e gelado. Fiquei preocupado porque show vazio também é um grande problema, de ordem dupla, até: fico meio mal pelo cantor, se apresentando e imaginando sua expectativa de lotar o Morumbi com pessoas, não moscas; e fica difícil fazer uma resenha na qual não se sente o calor da plateia, não dá para ver ninguém chorando ou tendo aquele momento catártico tão bonito de encontro com seu ídolo, aquela experiência religiosa que hoje as músicas proporcionam mais do que as igrejas (EPA!, desculpe pela profanação). Faltavam vinte minutos para o que eu achava que seria o começo do show e… cadê geral? Se conseguisse ouvir o narrador de minha vida, provavelmente nesse momento ele falaria “calma, Bete!, já, já a parada vai ficar cheia e lindona. Segura a bisteca que você ainda vai conseguir escrever sua resenha.”

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Antes do show começar, a pista do Grand Metrópole contava com uma discotecagem alucinada, com absolutamente todas as músicas que uma pessoa poderia cantar felizona e ainda suingar sem medo de não ter qualquer traquejo para a prática da dança (eu): Caetano, Michael Jackson e Tim Maia pra dar com pau, muito imbuído do espírito da promoção do primeiro lote, que presenteara seus compradores com ingressos para a cinebiografia do nosso maior ícone do soul e da zoeira. Os filmes que passavam no telão enquanto a música rolava solta também nos empurravam para a dança. A conjunção dos dois, música e vídeo, funcionaram magicamente como encantadores de serpentes, na qual o pessoal que ainda não tinha chegado para o show foi chegando e se aproximando cada vez mais pra perto do palco, a lotar o ambiente e tornar tudo mais gostoso, hipnotizados. O show não começaria à meia-noite nem com decreto, mas nada disso mais importava: o atraso começou a se tornar não necessário, mas um charme importante, como um batom vermelho numa boca que não precisava de mais nada a não ser sorrir e existir, mas que, por ele desenhado, arrebata ainda mais.

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Era algo entre 2h da manhã quando Tulipa entrou em palco. A plateia veio abaixo. A casa estava lotada do jeito certo: nada muito claustrofóbico, o frio com chuva e o show do Arctic Monkeys provavelmente serviram como filtro, deixando ali apenas fãs da cantora de voz tão única e potente. Tulipa estava com um vestido de paetês verdes que, com a luz do palco, reluzia dourado em certos momentos. Era uma sereia brasileira desfilando no palco todo seu carisma, que não é pouco. Sua simpatia e sorriso contagiante dão aquela vontade imediata de ser amigo, chamar para tomar uma depois do show, ser bróder e estar por perto em vários momentos. Não a conheço, mas, puxa!, como a Tulipa transparece esse ar meio zombeteiro, com um leve sorriso irônico. Após o fim do aplauso da plateia, já veio a primeira das várias pedradas da noite, com “É” e seu começo explosivo, com a bateria entrando como metralhadora, a voz de Tulipa dando socos no ar, uma música com letra tão fofa e tanta violência que tornou o ambiente um grande ringue de uma luta amorosa. Todo mundo leve nocauteado e a cantora, ciente disso, desfilando seu repertório de golpes suaves, controlando o microfone e a voz com a força típica de quem é gentil e ciente de seu poder. Ao enrolar os fios do microfone em seu rosto para cantar “Ok”, parecia que ela já estava no ponto, que não faltava nada para ficar ok, como a música diz, e que dali para frente a experiência só melhoraria com a chegada dos convidados.

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A primeira a entrar foi Baby do Brasil, com cabelos roxos longos, roupa preta transparente e a mesma energia e cara de como se estivesse ali lançando “Acabou Chorare” em pleno anos 70. Não há duvidas de que existe um retrato na casa de Baby do Brasil, envelhecendo dia após dia, alimentando a cantora com uma juventude interminável. Quando ela entrou em palco, todo mundo ali entendeu que a presença dela serviria para exercer um novo tipo de controle na plateia, aquele controle exercido apenas por ídolos de ritos pagãos, como se ela mesma fosse um encontro do sincretismo brasileiro e do próprio estilo musical que Tulipa hoje interpreta. Juntas, as duas musas de gritos se espelharam e encantaram por três músicas. Quando Baby saiu, Tulipa voltou ao seu repertório, mas alguma coisa havia mudado, como se houvera uma purificação no ambiente.

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Na primeira parte do show, pré-Baby, Tulipa estava em um caminho um pouco mais sombrio, dona de uma sensualidade lenta e esfumaçada, cuidando da plateia com certa volúpia. Pós-Baby entrou de novo o ar mais zombeteiro e sarcástico, com caras, bocas e sorrisos que desafiavam os presentes e, ao mesmo tempo, insinuavam o jogo de gato que culminaria na entrada de Otto.

Quando Otto entrou, o ambiente foi tomado pelo caos. O cantor andava, rebolava, insinuava-se para Tulipa, plateia, músicos, garrafas de vidro, lixos, banheiros, tudo era um objeto sexual no espírito inquieto do músico dionisíaco. Era como se um espírito de Exu (Parade?) tivesse tomado conta do palco, varrendo a correção e estabelecendo o princípio do prazer em todos presentes. Os corpos começaram a dançar até o chão, as pessoas se tornaram mais lascivas, Otto mostrava a barriga e rebolava, as pessoas respondiam dançando coladas, o calor da plateia apertada começou a se tornar outro tipo de calor e Tulipa, junto com Otto, entrou no mesmo embalo e ritmo, carregando de sensualidade o Grand Metrópole. Juntos cantaram músicas de ambos, de diferentes álbuns, como a já clássica Bob. Otto parecia não querer sair do palco, mas, quando saiu, o ambiente tinha sido novamente transformado. Agora era só esperar pelo momento em que os três juntos voltassem para terminar o show.

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Quando houve a reunião dos três no palco, após o pequeno intervalo em que a plateia não parava de pedir por mais, com já quase duas horas de show contadas no ébrio relógio de meu celular (poderia ser bem menos ou mais do que duas horas, nunca saberei), consegui entender uma faceta de Tulipa que ainda não tinha assimilado: ela é uma médium, uma mediadora dos corpos e espíritos que ali estavam presentes. Fora a sensualidade de Baby do Brasil, a inquietude e o caos de Otto, a sua própria ironia, uma espécie de Zelig musical, incorporando o melhor de todos os cantores e mudando seu próprio show a cada passo ou possibilidade de presença de um dos convidados. Foram muitas Tulipas vistas em uma noite. O encerramento foi apoteótico, com os três cantando “Eu também quero beijar”, de Pepeu Gomes, após Otto resolver começar a cantar essa música, ajoelhado para Baby, completamente a capella.

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Gostei de ver como o show da Tulipa é diferente das músicas de estúdio. No álbum você consegue sentir certa selvageria contida, certa possibilidade das músicas crescerem no palco. Tinha medo dessa contenção continuar e o show ser apenas uma esperança do que poderia ser em minha cabeça. Mas não. Os instrumentos ficam mais pesados, o som fica um pouco mais sombrio, há uma aura mais densa e necessária, como se o contraponto entre as letras e os gritos maravilhosos de Tulipa finalmente encontrassem um ponto em comum. Com a companhia de Otto e sua presença caoticamente demiúrgica e a atemporalidade de Baby do Brasil, tudo se potencializou e o show vira uma grande explosão cosmológica. Tulipa se desdobrou em várias e você acaba vendo vários apresentações em apenas uma.

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18/11/2014

Sou pesquisador e escrevo resenhas de shows pagando de crítico musical porque gosto muito de música e minha verdadeira intenção era ser multi-instrumentista ou vocalista de alguma banda. O problema é que falta habilidade para tocar até campainhas mais complexas e meu alcance vocálico lembra uma taquara rachada.
Nicolas Henriques

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