O talento arrogante de Marc Bolan em “Born to Boogie”

30/09/2014

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Revista NOIZE

Por: Revista NOIZE

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30/09/2014

Em Popcorn – O Almanaque dos Filmes de Rock (Editora Seoman), o jornalista inglês Gary Mulholland acopla o trabalho de crítico musical a uma de suas maiores paixões: tecer a primeira análise de que se tem notícia sobre o estranho, e muitas vezes desconcertante, mundo dos filmões-concerto de rock – entre outras produções comerciais, blockbusters e cinebiografias – de todos os tempos.

Muito mais do que isso, esta obra é, ao mesmo tempo, uma análise crítica séria e também uma homenagem aos filmes clássicos, aos filmes B e ao cinema trash sobre rock. E, igualmente mais à vontade, pois ao longo do livro o autor sente-se confortável para homenagear e desconstruir – ou destruir, dependendo do caso e, na maior parte das vezes, de seu caústico senso de humor – cult movies como Performance, Gimme Shelter, Grease (Nos Tempos da Brilhantina) e Footloose (Ritmo Louco). Também são revisitados, ao longo da extensa obra de Mulholland, clássicos filmográficos dos mais diversos gêneros envolvendo música. Alguns deles recordistas de bilheteria mundo afora – a exemplo de Woodstock, The Rocky Horror Picture Show, Quadrophenia, Easy Rider (Sem Destino), Saturday Night Fever (Os Embalos de Sábado à Noite) e dezenas de pérolas do cinema pop nem tão (ou nada) conhecidas assim. Slade in Flame, longa-metragem estrelando os demolidores Slade, no auge da fama, e Purple Rain, estrelando Prince, grande sucesso nos anos 80, também são desenterrados pelo autor.

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Se estivesse vivo, o vocalista do T.Rex, Marc Bolan, estaria completando 67 anos hoje. Com autoriazação da editora Seoman reproduzimos aqui o texto completo em que Garry Mulholland discorre sobre concerto-show Born to Boogie, que captura non-sensemente o auge da ‘T-Rexmania” que, no começo dos anos 70, varreu a Europa de uma ponta a outra. O filme, primeira produção bancada pela Apple Filmes, criada pelos Beatles, tem direção do Ringo Starr, que também toca e atua no filme. Além de Elton John, que empresta seu histriônico piano a “Tutti-Frutti”, de Little Richard, e põe fogo, literalmente, na incandescente versão de “Children of the Revolution”.

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Do início do filme, com o logotipo da Apple descascando-se ao som de uma trilha excitante criada pelo T.Rex, até o seu termino, Born to Boogie é carregado de emoção, histeria e exacerbação. E, evidentemente, muito rock. Na sequência inicial, a uma antiga foto do ídolo rockabilly Eddie Cochran sobrepõe-se a uma foto do então petiz Marc Bolan (na época ocupando o pedestal de Rei do Rock na Inglaterra) em idêntica pose. Morrissey, do The Smiths, disse que o primeiro show que viu na vida foi Born to Boogie (filmado em 19 de março de 1972, no Empire Pool de Wembley, em duas apresentações) e confessou que tal experiência foi definitiva para que decidisse seguir uma carreira no rock. Leiamos a análise de Gary Mulloand, que – bem ele fez – não poupa elogios ao filme e a Marc Bolan e, tampouco, algumas defenestrações.

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Born to Boogie (1972)
Por Gary Mulholland

Estrelando: Marc Bolan, Ringo Starr, Mickey Finn, Geoffrey Bayldon, Elton John
Direção: Ring Starr
Argumento: Astro pop faz apresentações e desperdiça tempo em tolices com um Beatle
Frase Antológica: “Não, ele não era rico. Ele tinha um monte de dinheiro, sabe? Às vezes usava o sol como pandeiro”.

A banda T.Rex era o máximo em 1971. De modo que vendia milhões, incomodava as publicações sensacionalistas, e era tão famosa quanto os Beatles. E isso, em si, continua sendo estranho, porque Marc Bolan estava muito mais para filmes de arte do que demonstrativos de lucros. Tendo fundado o Tyrannosaurus Rex como um festival cult gratuito no final dos anos sessenta, cantando sobre magos, elfos e garotas chamadas Deborah, que eram exatamente uma zebra, acompanhado de violão e bongô, a sua mudança repentina para guerreiro elétrico e ídolo cantor foi semelhante a Devandra Banhart de repente trocar os pelos faciais excessivos e os folclorismos ao redor da fogueira por um corpo sarado e correntes de ouro, fazendo uma fortuna com o R&B ao estilo Usher. Bolan realmente conseguiu um coro de garotas num art-rock minimalista, pós-moderno, pré-Ramones, enquanto machões fanáticos por futebol fingiam trejeitos afrescalhados para imitá-lo. O rock anos cinquenta de Bolan, atrevido, retrabalhado, com seus duendes sexies amuados, arrumadinhos e deliciosamente sem sentido eram exatamente o que a Grã-Bretanha precisava depois da separação dos Beatles e de inundação de cantores-compositores de rock falsamente rústicos, profundamente preocupados e monstruosamente maçantes. Seu sucesso foi tão vertiginoso que os Beatles financiaram este projeto de vaidade cinematográfica.

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Tal projeto de vaidade consiste em destaques escolhidos entre dois concertos soberbamente filmados no Empire Pool, em Wembley (atualmente Wembley Arena), intercalados de uma sessão em estúdio na qual a banda T.Rex é acompanhada pelo diretor Ringo Starr e Elton John, e cenas surreais e extravagantes inspiradas, como é informado no documentário Making Of do DVD, em Fellini. Basta dizer que, como acontece com os diretores de filmes de arte, Ringo acaba por se revelar um baterista realmente bom. Mas isso é parte do que torna Born To Boogie um ótimo filme de se ver; é um exercício de arrogância e preguiça mascarando a espontaneidade criadora que lhe diz tudo o que você precisa saber sobre a autoestima e a inutilidade inocente do rock após elevados picos intelectuais da era de ouro de 1960. Além disso, os fãs são tão bonitos e me deixam tão nostálgico da década de 1970… blusas e suéteres demasiado apertados, maquiagem toda errada e um alegre desprendimento completamente não agressivo. Os shows são como uma convenção de geeks e nerds, e você imagina com carinho que todos eles se tornaram artistas e escritores e punks precursores e sexualmente ambíguos. Mas provavelmente tornaram-se corretores imobiliários e vendedores de loja, assim como o resto de nós.

Born to Boogie parece um filme de concertos normal até o fim de “Baby Strange”, e de repente estamos no final do que parece ser uma pista de aeroporto vendo um carro vermelho aproximar-se na nossa direção. Mesmo quando ainda está a alguma distância, você sabe que a figura de pé no pequeno carro esporte é Marc — um homem tão especial, Ringo parece estar nos dizendo, que você pode identificar que é ele a 100 metros de distância. Ele está usando um gorro marrom de mago e bate no motorista com um mata-moscas. O motorista é um homem fantasiado de camundongo. Um telefone toca e Bolan atende enquanto o seu amigo peludo se junta a ele no banco de trás. Ele tem uma conversa idiota sobre um homem em Nova York. Bolan, em seguida, acena para alguém não mostrado pela câmera e, de repente, aparece um personagem — puf! Magia! — do nada. É um anão em uma fantasia de super-herói. Marc lhe bate. O Supernanico come o espelho retrovisor de Marc.

Outra mudança repentina e estamos assistindo a Bolan, Ringo e Elton John tocando uma horrível versão de rock de barzinho de “Tutti Frutti”. Em seguida, Elton acompanha Marc em uma versão de “Children of the Revolution”, que ele canta como uma cabeça sem corpo dentro do piano de Elton. E eu acho que você deve estar captando a ideia a essa altura. Mas é algo extraordinário ver Elton e um Beatle sendo acompanhantes de Marc Bolan. Isso dá uma ideia de como Marc era importante e bacana em 1971.

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A parte em que Bolan e Starr ficam sem ação enquanto tentam fazer algum tipo de encenação para a câmera com base na letra de “Party”, de Elvis Presley, é uma visão incômoda, porque Bolan está obviamente forçando o riso e Ringo está tentando e não conseguindo esconder a sua impaciência com o seu astro tolo, folgado. Essa parece ser a questão principal do filme; a personalidade ardilosa de Bolan, tão agradável logo que ele começa a tocar a sua guitarra e a cantar, é um recipiente vazio quando a música para, e ficamos com a incapacidade do pobre Ringo de encontrar alguma substância nela. Bolan ainda pode parecer magro e bonito, e achar-se no auge da popularidade a essa altura. Mas pode-se ver o seu declínio futuro a cada quadro. Ele usou toda a sua inteligência criativa na invenção do glam rock, e é fascinante assistir a um filme em que se pode ver que o fracasso do astro é inevitável, ao passo que o próprio astro acredita que todas as suas ideias e a sua expressão são de ouro maciço e de fácil interpretação. Na verdade, mais assustador do que fascinante. Se a sua morte, em 1977, tivesse sido por suicídio, overdose de drogas ou assassinato, o filme seria impregnado de presságio, mas um acidente de carro enquanto ele estava se tornando a fada-madrinha do punk enfraquece completamente o ângulo da morte.

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Após o esforço em busca do sentido revolucionário do rock do final da década de 1960, a reação negativa de 1970 foi o rock ’n’ roll como um fim em si mesmo. “Cosmic Dancer”, interpretada maravilhosamente aqui, contém o cerne do cerne: “Eu dancei ao sair do útero / É estranho dançar tão cedo?” [No original: “I danced myself right out the womb/Is it strange to dance so soon?”]. A resposta seria não, naturalmente, porque na estética do rock que Bolan inventou, isso é tudo o que existe. As crianças (de todas as idades) dançando o rock ’n’ roll, sempre sonhando, sempre inocentes. Uma mágica terra das fadas de prazer sem sentido. Parece muito bom para mim. Mas a década de 1970 foi um período muito cínico para sustentar isso por muito tempo.

O DVD inclui um documentário Making Of dirigido pelo filho de Marc, Rolan. É uma hagiografia, é claro, mas tem muitas informações úteis e algumas imagens em preto e branco encantadoras de Bolan jovem na época hippie e de parceiro de John Peel. O que não menciona é que Bolan chutou brutalmente Peel para a sarjeta assim que ele ficou grande o bastante para sair com ex-Beatles, nem que Peel passou a ser uma lenda universalmente admirada, o que Bolan não foi.

Portanto, fãs de verdade: os ingressos para os shows no Empire Pool eram de 75 pennies. Os jardins em que é filmado o lanche da tarde ao estilo Lewis Carroll eram da casa de John Lennon, e os hambúrgueres consumidos eram da Fortnum & Mason. O garçom do lanche da tarde é interpretado por Geoffrey Bayldon, que começou no ramo dos espetáculos interpretando o papel-título em um programa infantil da TV realmente muito brilhante da década de 1970 intitulado Catweazle, sobre um bruxo medieval que se vê transportado no tempo para os anos setenta e se vê às voltas com a magia dos “truques elétricos” e do “osso que fala”. Um fã cabeludo da banda T.Rex insiste que ele quer chantagear o governo britânico. Bolan uma vez chutou Tony Visconti no saco. E, claro, Marc teve uma premonição de que morreria em um acidente de carro.

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Visconti, que produziu os dois maiores discos de Bolan e David Bowie, comenta com Rolan: “Seu pai era arrogante o suficiente para acreditar que podia entrar no palco sem adereços”. Ele tinha o direito de ser arrogante. Em Born to Boogie, vê-se que a banda T.Rex trabalha em um palco pequeno, sem frescuras, sem show de luzes, sem nada da pompa teatral de Bowie. Mas ele ainda é melhor ao vivo do que Bowie, e isso explica por que Bolan foi tão adorado pelos punks, com sua estética despojada. Os punks não eram modestos. Eles tinham certeza de que o carisma dos seus astros e a intensidade da música eram a parte mais importante do espetáculo do que porcos voadores e lasers. Nesse sentido, Bolan foi uma das maiores inspirações do punk.

Born to Boogie é um filme de rock fundamental, porque é um perfeito exemplo do fracasso constante do rock de dar vida à sua campanha revolucionária e da inevitável loucura de um homem adulto fingindo que é melhor do que nós porque toca uma guitarra. Mas também porque é um dos poucos filmes deste livro em que as apresentações ao vivo deixam você de cabelo em pé, gingando os quadris e mordendo os lábios em uma homenagem verdadeira ao gênio que foi Marc Bolan. Se ela for, às vezes, embaraçosamente ruim, então só serve para lembrar que o rock and roll era melhor quando revelava as suas mentiras e fraquezas, encolhia os ombros e sorria, e balançava, de qualquer forma, os quadris na sua cara.

Assista a Born to Boogie na íntegra:

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30/09/2014

Revista NOIZE

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