
“É que tem mel que só a Bahia tem”, canta Rachel Reis na música “Apavoro”, em parceria com Psirico. Divina Casca (2025), segundo álbum da baiana de Feira de Santana, prova isso. A cantora brinca com a mistura de gêneros e passeia, pelas faixas, do MPB ao arrocha.
Rachel define seu novo álbum em 3 palavras: tempo, construção e identidade. A cantora apresentou o repertório no Nômade Festival, em um show abraçado pela plateia. Mas, escolher a faixa favorita do álbum, é um desafio para a baiana.
“Minha música favorita vai mudando. Tem dia que é “Casca”, eu também amo a vibe de “Noite adentro”, a energia da música, amo “Jorge Ben”, mas tem dia que eu estou apaixonada pelo “O maior evento da sua vida”. Vai trocando”, diz ela.
Com uma sonoridade única, carisma e presença de palco, Rachel Reis conquistou o público. Em entrevista à Noize, Rachel fala sobre a construção do álbum, parcerias aguardadas, o apelido de “sereiona” e o amor por novelas antigas.
Meu Esquema (2022) recebeu uma indicação ao Grammy Latino, aumentando, ainda mais, as expectativas para Divina Casca (2025). Como você está sentindo a recepção do álbum pelo público? Quais são as suas expectativas da recepção do novo trabalho?
O Divina Casca (2025) é um álbum muito conectado comigo. Ele tem muito do Encosta (2020) e do Meu Esquema (2022), talvez seja um irmão mais velho do Meu Esquema (2022). No Divina Casca (2025), eu consegui manter a minha identidade.
Fiquei muito feliz com a forma que o álbum foi construído, com referências de coisas que eu já fiz, de dentro do meu universo, só que de um jeito mais maduro. Acontece, em 5 anos, a gente muda, não somos mais as mesmas pessoas que éramos.
Eu flertei com sonoridades diferentes, dentro do meu universo, da minha identidade e de coisas que eu, genuinamente, curto muito. Coloquei jazz, samba, swing carioca e percebi que as pessoas têm abraçado. Eu recebo muitas mensagens falando sobre as músicas, em como elas tem tocado as pessoas. No último show, eu já percebi a energia do público, como eles já sabiam cantar as músicas e isso me conforta.
No fim das contas, é muito sobre perceber e ver nossa música se conectando com as pessoas. Elas ouvindo algo que, em algum momento, não sabiam como definir e a música mostrou para elas. Estou feliz com a recepção do álbum.
O título do álbum chama atenção, pela poesia — o que significa “Divina Casca” pra você?
Eu cheguei nesse nome depois de pensar muito. Durante a minha carreira que, para alguns é pouco tempo, mas, de 2020 até aqui, eu não parei de trabalhar nenhum dia. A gente que é artista independente, a gente que é preto, não pode vacilar, não temos essa permissão.
Trabalhei todos os dias, e de uma forma intuitiva, instintiva, porque eu não tinha, às vezes, noção do que eu estava fazendo [risos]. Eu comecei a lançar as minhas músicas e as coisas foram acontecendo. Estou aprendendo enquanto faço, trocando pneu com carro andando.
Esses 5 anos me influenciaram e me fizeram olhar para trás, da infância até aqui. Me trouxeram a reflexão sobre a casca que a gente cria, algo não literal, das nossas vivências, que o tempo dá para gente, como uma árvore, que vai sendo esculpida, pelo vento, pela chuva e por tudo mais.
Essa casca faz parte da gente e da construção da maturidade que vamos adquirindo ao longo da vida. E, também, uma homenagem a nossa casca literal, a casca que carrega a gente, que recebe todo o impacto da nossa vivência e que, muitas vezes, ela não recebe o valor e atenção que merece. Nossa casca é nossa pele, nosso corpo.
Eu quis trazer essa ligação entre a casca literal e não-literal para trazer o álbum com muitas coisas aprofundadas na minha vida pessoal. Em Encosta (2020) e do Meu Esquema (2022), eu falava muito sobre amor romântico e, dessa vez, eu mantenho esse tema, mas de uma forma mais real, menos ilusória.
As faixas passeiam muito pelo bem MPB, rap e até arrocha. Como foi trabalhar com essa mistura de gêneros musicais e como você acha que isso enriqueceu seu trabalho como artista?
Morando na Bahia, que é um mundo musical próprio, tudo que eu absorvi da minha infância até minha vida adulta, me influenciou muito.
Aqui, temos a sonoridade de Raul Seixas, de João Gilberto, pai da bossa nova, Tropicália, as maiores musas da música baiana, Daniela Mercury e Ivete Sangalo, é uma imensidão. Só em Feira de Santana, minha cidade natal, são nomes diversos, Russo [Passapusso] nasceu lá, Luiz Caldas, pai do Axé Music, também, Duquesa, nome muito forte da cena do rap e do trap, e por aí vai.
Nasci na Bahia, com essa gama musical, e sou filha de uma ex-cantora de forró, então, logo criancinha, vi minha mãe nos seus últimos shows, misturando gêneros. Eu também tenho uma irmã mais velha que me apresentou muita coisa do universo da música, como pop rock, com Amy Winehouse e Charlie Brown, e MPB, ao mesmo tempo que, hoje, ela é uma cantora de forró.
Todas as mulheres da minha família foram influenciadas pela Bahia. A Bahia me influenciou e elas me influenciaram. Naturalmente, o meu álbum segue esse caminho. Eu não penso a sonoridade de uma forma racional, de forma natural a mistura acontece. As minhas playlists são assim, um caos [risos].
De Encosta (2020), passando por Meu Esquema (2022) até chegar em Divina Casca (2025), o que mudou de uma produção para outra e na Rachel como artista?
Encosta (2020) foi o primeiro sonho. Eu já tinha lançado 2 singles, mas desejava lançar um material mais denso, mas era difícil, não tinha dinheiro. Foi o primeiro ato de um sonho, de lançar meu próprio material.
Meu Esquema (2022) também foi feito de um jeito super leve, mas engrandecendo o sonho de colocar um álbum meu no mundo. Acho que a diferença, entre todos eles, é que um foi mais arquitetado que o outro, em todos os sentidos.
Consegui mostrar exatamente o que eu queria mostrar, mas, ainda sim, de um jeito natural e que abraçasse as minhas músicas. A maturidade é a grande diferença de uma produção para a outra. O Divina Casca (2025) chega com um pouco mais de corpo, com mais casca.
“Jorge Ben” é a minha faixa favorita do álbum. Poderia falar um pouco sobre o processo criativo da música e essa homenagem?
Jorge Ben sempre me encantou. Ele é uma figura emblemática e complexa. Tenho uma ligação afetiva com as músicas dele, de ouvir desde criança. A figura dele me deixa intrigada, eu gosto de como ele escreve as músicas, de um jeito muito sutil, de transformar qualquer coisa em música. Eu gosto do jeito que ele é ele. Ele mantém seu jeito genuíno, independente do que está acontecendo no mercado, ele criou uma identidade e se manteve fiel a isso.
Gosto do jeito que ele quebra a ideia de música de amor, que as pessoas já colocam na caixinha de ser uma música “meio murcha”. Ele quebra isso trazendo a figura de um malandro apaixonado. Como ele é apaixonado pelas mulheres que ele retrata nas músicas, como ele é apaixonado por Domingas. Ao mesmo tempo, ele consegue fazer isso de um jeito muito swingado e malandro, de uma pessoa real, que traz o amor na música e na vida.
Quando escrevi a música, tentei imprimir a ideia de porque o amor é importante pra mim e como eu vejo o amor na música, que é muito o que Jorge Ben traz, e que o amor não é nada clichê. O amor me ajuda a estar de bem com a vida e com as pessoas ao meu redor, e eu enxergo muito isso na figura de Jorge Ben Jor, ele transformou o amor no ganha pão. Tudo isso me inspirou na construção da música.
Trouxemos o samba misturado com jazz, o swing carioca, trouxemos referências da música de Jorge Ben, com o violão. Não chegamos perfeitamente no que ele faz, todo mundo fala que é muito difícil tocar como ele toca, mas foi uma homenagem de coração. Se um dia ele escutar, espero que ele goste.
Divina Casca (2025) traz uma releitura de “Sexy Yemanjá”, dos Novos Baianos. Por que você decidiu regravar a música e como a faixa te representa?
Eu sou muito noveleira e nostálgica. Quando eu era adolescente, estava reprisando Mulheres de Areia e, “Sexy Yemanjá” na música de abertura, me chamava muita atenção. Eu ficava esperando para ouvir.
Então, eu trouxe a música porque brinca com a identidade da sereiona, também porque eu sou uma pessoa nostálgica e fã de novela, porque estamos falando de Pepeu Gomes, que é um grande baiano, um grande artista.
Fiquei super feliz e honrada quando conseguimos autorização para a faixa. Foi um presente ter essa música comigo, porque tem uma grande afetiva muito grande, de nostalgia, da minha infância. Dentro dos visuais, também temos referências à “Mulheres de Areia”.
A estética de sereia se reflete não só na estética do álbum, mas também nas músicas, como em “Furacão” e “Sal da Pele”. A “sereiona” é algo que diz muito sobre você, como surgiu o apelido?
Quando eu era adolescente, eu adorava a série “Canto da Sereia”, com a Isis Valverde. Eu amava, adorava ver a cantora de axé que subia no trio, e tinha algo simbólico e sobrenatural na história dela, com a sereia, e morando na Bahia. Eu ficava vidrada naquilo.
Quando eu cantava em barzinho, eu flertava com a ideia de ser uma cantora sereia. Fernando, meu amigo, que hoje trabalha na produção comigo, captou essa ideia e começou a brincar, quando nos conhecemos, me chamando de sereiona. Meu pai também me chama de Odoyá.
Naturalmente, quando fizemos o Meu Esquema (2022), a capa tomou essa forma, eu estou realmente uma sereiona ali, meio desconstruída. No álbum, também tem a intro do “Canto da Sereia”.
Esse universo foi se ligando até que o apelido ganhou força e hoje, com muito carinho, os fãs me chamam dessa forma, e eu amo. Fico feliz, porque faz parte da minha identidade. Então mesmo que, depois, eu trabalhe com outras estéticas, eu quero trazer o que da sereiona.
O álbum conta com participações de BaianaSystem, Don L, Psirico e outros. Como você enxerga as aproximações entre o trabalho deles e o seu?
Esses dias, recebi no instagram a pergunta “Qual seu critério para fazer feat?”. Meu critério é: ser fã! Eu tenho que gostar da pessoa e ela tem que gostar de mim. Sou fã de todos eles, admiro, a aproximação foi super natural, porque a gente já trocava nos bastidores.
O BaianaSystem eu citei na música “20h” e eu já sentia que rolava expectativa, em relação aos fãs, de ter um feat entre nós. Além disso, eu e Russo temos uma ligação, de ter nascido na mesma cidade, sonoridade que conversa, eu me inspiro muito neles.
Também a música “Apavoro”, com Márcio Victor, foi produzida pela galera original do pagodão e ficou do jeitinho que tinha que ser. Sou apaixonada pela letra e pela construção da música.
Em “Tabuleiro”, Nessa, pra mim, é uma popstar. Uma menina negra que faz um pop original, sendo original, cantando e dançando muito no palco. Eu queria trazer ela para essa faixa, a voz dela combinou super bem com a minha e com o reggae que colocamos.
Lá, também tem Don L e Sapiência, pra mim, a caneta deles é coisa de outro mundo, a forma que eles compõem. Eu mostrei o trecho que eu cantava na música e eles entenderam imediatamente a linguagem da música, tudo isso com coisas da vivência deles que também passam por mim.
O que você espera que as pessoas sintam e vivam ao ouvir o álbum?
Espero que, de alguma forma, o álbum consiga traduzir para as pessoas algo que elas não conseguiram traduzir ainda, que elas sentem, intuitivamente, mas não conseguiram colocar em palavras. Espero que elas se identifiquem, que o Divina Casca (2025) abrace, traga conforto, que faça parte de boas memórias.
Esses últimos 5 anos têm sido agitados para sua carreira artística. Como você enxerga seu futuro? O que você ainda busca alcançar?
Quero me manter bem, tranquila. Conseguir viver da música, do meu trabalho, do jeito que eu faço, com dignidade. Que eu continue encontrando pessoas boas no meio do caminho e que eu consiga levar minha música para todos os lugares possíveis.