
Quando Esmir Filho recebeu o convite para dirigir e escrever a cinebiografia de Ney Matogrosso, tudo o que tinha era um título previamente escolhido: “Homem com H”, que faz referência a um dos principais hits do artista. A primeira coisa que fez foi imediatamente ouvir a discografia do sul-mato-grossense, desde a época do Secos e Molhados até atualmente — neste ano, Ney completa 5 décadas de carreira. A decisão parecia óbvia: irmão da apresentadora e jornalista musical Sarah Oliveira, Esmir respira música desde quando se lembra.
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Foi a partir do repertório de Ney que o diretor escolheu o recorte para a história que queria contar. A missão não era fácil, visto que se trata de um dos artistas mais queridos (e subversivos) do Brasil. Quando finalmente chegou às 15 faixas escolhidas, o diretor percebeu que elas realmente contavam a história de um homem com H maiúsculo, que subverteu os papeis de gênero e apresentou uma nova perspectiva para se falar de masculino.
É essa história, que perpassa por diferentes épocas da vida de Ney Matogrosso, que o espectador pode conferir em Homem com H, filme que estreia no próximo feriado de 1º de maio.
Batemos um papo com o Esmir Filho, que tem no currículo obras como o inesquecível curta Tapa na Pantera (2006) — da era dos protomemes — além de Os Famosos E Os Duendes Da Morte (2009) e Verlust (2022). Na entrevista, ele nos conta como foi mergulhar na vida e obra de Ney Matogrosso. Leia abaixo:
Como é para você essa transposição de levar a música para o cinema? Além de Homem com H, você também teve um filme inspirado no Bob Dylan [Duendes da Morte], né?
A música sempre fez parte da minha vida. Eu tenho uma relação forte com o meu ouvido. Fui pesquisar isso na neurociência, como é interessante o fato de a gente poder fechar os olhos e entender a montagem no cinema somente pelo ouvido. Quando a gente vai dormir, a gente não consegue “fechar os ouvidos”. Então, estamos ouvindo o tempo todo. Imagina que metade da nossa vida é fundada pelo inconsciente… porque o som faz isso, funda nosso inconsciente.
Então, para mim, o som é a cama sonora do filme, é o que leva os espectadores no inconsciente, enquanto ele conscientemente vai elaborando as imagens que está vendo, os diálogos. Então, para mim, a música é muito importante. Quando eu comecei ali nos Duendes, contando a história um menino que era fã do Bob Dylan, acho que, ao escolher “Mr. Tambourine Man”, é a música que me leva pra esse lugar, que me mostra um novo mundo. É quase como se eu tivesse pegado a letra dessa música e colocado na vida desse menino, que tá esperando o Mr. Tambourine dele. Então, posso dizer que é um filme sobre a música em si.
A música desperta uma memória afetiva nas pessoas. Por isso, também uso canções para a preparação dos atores no set.
Receber essa cinebiografia do Ney Matogrosso foi um presente. Estávamos na pandemia ainda, eu, isolado no meu apartamento.
Então, deitei no sofá e comecei a ouvir a discografia inteira dele, em ordem cronológica. Esse foi meu primeiro ingresso na vida do Ney. E foi bonito, porque a relação dele com a música é de amor à primeira escuta. Porque ele não é compositor, é intérprete. E quando ele escolhe uma música, tem que bater na hora. Ele se apaixona. Eu também exercitei o amor na primeira escuta, por assim dizer.
Tive de fazer uma peneira, até chegar às 15 faixas que estão no filme. As músicas são uma espécie de coluna vertebral da narrativa.
Então você escolhe um recorte, né, um caminho narrativo a partir das músicas… Elas que te dão uma primeira pista de qual história contar.
Seria mais ou menos isso, você falou muito bem.
Tem uma cena do Ney conhecendo o Cazuza na praia, que postamos em nossas redes. Você teve também um mergulho na obra do Cazuza?
Pois é. Quando eles se conheceram e se apaixonaram, o Cazuza ainda não era O Cazuza. Ele era o filho do João Araújo, da Som Livre, que tirava fotos para a gravadora.
Achei isso maravilhoso, porque o Ney se apaixonou por aquele menino, mas, ao mesmo tempo, viu o potencial artístico daquele rapaz. E foi o Ney que fez com que o Cazuza e o Barão Vermelho começassem a tocar nas rádios. Isso eu aprendi com a história do Ney.
Foi o Ney quem dirigiu a turnê O Tempo Não Para. Foi ele que escolheu o figurino do Cazuza, que desenhou a luz, que escolheu o “Tempo Não Para” para estar no show. Porque o repertório já estava fechado, e o Cazuza falou: “Olha, tenho aqui uma música…”. Ele mostrou a música e o Ney falou na hora que tinha de entrar.
Acho que mergulhei na trajetória do Cazuza, sim, mas através do olhar do Ney. Isso foi muito interessante, mostrar essa faceta nova do Cazuza, porque ele já foi maravilhosamente apresentado.
Então, foi assim que conheci o Jullio Reis, que interpreta o Cazuza. Ele tem essa doçura, essa luz, e fez um trabalho maravilhoso. Eu falei pro Jullio: “Olha, esqueça os outros Cazuzas, qual Cazuza você vai trazer?” Eu acho que a gente foca nessa faceta carinhosa do Cazuza no filme, muito pelo trabalho do Jullio, pela compreensão que ele teve do Cazuza e de sua intimidade.
Já que você comentou um pouquinho do casting… Como foi a seleção do elenco?
Eu já tinha o Jesuíta [Barbosa] na cabeça desde o início. Eu gosto da forma como ele se expressa, da coragem dele em cena, como ele é reservado no cotidiano… mas aí, em cena, ele engrandece. Assim como o Ney, que é reservado, mas, no palco, torna-se aquela explosão. Ainda assim, abri uma seleção porque estava interessado em ver outras pessoas vivendo o Ney. E foi bonito esse processo, porque foi através dele, por exemplo, que conheci Jeff Lyrio, que faz o Gerson [Conrad, do Secos e Molhados]. Eu falei: “Pronto esse é o Gerson”. E com o Jesuíta, não teve jeito. Outras pessoas já me diziam que achavam ele a cara desse papel, então foi como se o Jesuíta já estivesse no imaginário coletivo do público [risos].
Agora, sobre a cinebiografia como formato: desde o lançamento do próprio filme do Cazuza [Cazuza – O Tempo Não Para, de 2004, dirigido por Sandra Werneck], tivemos diversas outras cinebiografias, e internacionalmente também, como Rocket Man [sobre Elton John] e Um Completo Desconhecido [sobre Bob Dylan]. Como foi pra você pensar nesse formato e diferenciá-lo desses lançamentos recentes?
Eu tinha um desafio, porque as biografias que mais gosto são aquelas que são um recorte de tempo. Como o Spencer [de 2021, dirigido por Pablo Larraín], sobre a Princesa Diana, que se passa em um feriado de Natal. Você entende a dimensão do personagem nesses momentos, eu gosto disso. Só que, quando me deparei com a história do Ney, entendi que seria uma jornada do herói. É aquele protagonista que é impedido, principalmente por uma figura de autoridade, o pai, de ser o artista que ele quer ser. É a partir desse “você não vai ser” que ele vai para cima, vai enfrentando vários obstáculos, figuras de repressão, censura…
Então, eu falei: “Gente, estou fazendo agora um recorte emocional, vamos atravessar décadas e épocas neste filme” — que é justamente o que não pensava ser meu estilo [risos].
A partir daí, me inspirei muito na biografia de Édith Piaf [La Vie en Rose, de 2007], porque traduz o rompante que essa artista era. É o oposto do Ney, porque Édith vai definhando, enquanto Ney vai ficando cada vez mais forte, exuberante.
Ele é o nosso pássaro, ele é a nossa voz que impressiona, ele é nosso artista de cena, tem essa dramaticidade, é ator que se maquia… Então, assim, ele é nosso artista por completo. Foi assim que quis contar essa história.