Rosa Passos é homenageada pela União Brasileira de Compositores (UBC)

Mostrando que o rock não acabou, Moptop retorna com novo disco e show esgotado

Saiu #223 – Pabllo Vittar, Ney Matogrosso, Luedji Luna, Gilberto Gil, Samuel Rosa e mais

Girando o disco, mudando a cena: conheça o Spin Sisters, clube de vinil para mulheres

“Movimento Algum”, álbum de Fernando Motta, mescla Clube da Esquina com shoegaze; leia a entrevista

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<p>O rapper norte-americano <strong>T-Pain</strong> estava sentado tranquilo em um avião viajando à cerimônia do BET Awards de 2013 quando uma aeromoça chamou sua atenção. Era <strong>Ushe</strong>r, cantor de R&amp;B e amigo pessoal do rapper, que o chamava. T-Pain chegou com aquela conversa fiada inicial: "E aí, tudo bem? Como você tá?". Mas Usher estava sério e preocupado, e então lhe disse: "Cara, você meio que estragou a música. Você estragou a música para os cantores de verdade".</p>

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</div></figure>

<p>Estrela de hits como "Buy U a Drank" (2007), T-Pain foi um divisor de águas na difusão do Auto-Tune como estilo vocal no rap e na música pop. Amado e (muito) odiado, o seu modo de usar e abusar do software — um afinador de voz digital — popularizou a ferramenta e provocou uma enorme controvérsia no cenário musical. A CNN chegou a descrevê-la como "a invenção que mudou a música para sempre", enquanto artistas como <strong>Jay-Z</strong> revoltaram-se, o rapper chegou a pedir seu fim em "Death of Auto-Tune", faixa de 2009.</p>

<p>O que era um mero afinador logo passou a ser cada vez mais explorado a partir de diversas abordagens criativas. O programa, que a princípio foi pensado para corrigir erros, ganhou um outro sentido: um recurso expressivo, uma sonoridade única, capaz de dar vazão a novas identidades sônicas.</p>

<p>Curiosamente, as sementes que dariam no Auto-Tune cresceram bem distante da indústria fonográfica. O inventor do software é o norte-americano<strong> Andy Hildebrand</strong>, engenheiro elétrico que trabalhava na Exxon Mobil, uma das maiores companhias de extração de petróleo do mundo.  O cientista era especialista em processamento de dados sísmicos, que são empregados para localizar petróleo no solo. Após explodir dinamite no solo, ele captava as reverberações a partir de um geofone. "Matematicamente, é como sair na chuva durante uma tempestade de raios, fechar os olhos e, através do som ecoado pelo trovão, determinar o formato das nuvens", contou ele em depoimento à série documental <em>This Is Pop </em>(2021)<em>.</em></p>

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</div></figure>

<p>Certo dia, uma amiga pediu a Hildebrand, brincando, que ele criasse uma máquina que a faria cantar de forma afinada. Ele então percebeu que a lógica do seu trabalho com sistemas geológicos poderia ser aplicada para desenvolver esse programa e montou várias equações e problemas matemáticos para torná-lo possível em termos de computação. Quatro meses depois, o Auto-Tune estava pronto.</p>

<p>A princípio, o Auto-Tune era uma ferramenta para reparar a desafinação, e o impacto foi praticamente imediato. Se, antes, os artistas ficavam uma semana no estúdio para gravar os vocais, o novo dispositivo reduziu esse tempo para metade de um dia. Hildebrand costuma contar um caso curioso: "Um produtor muito famoso me abordou e disse: 'Andy, você mudou a minha vida. Meu trabalho era encontrar pessoas que cantavam bem e agora eu só tenho que achar pessoas bonitas".</p>

<p>Por um bom tempo o uso do Auto-Tune foi mantido na surdina, evitando levantar polêmicas sobre a competência e o talento dos cantores. Mas começaram a surgir usos inesperados da ferramenta, que não correspondiam às intenções de seu criador. Ao colocar o ajuste do programa no 0, a voz fazia mudanças de ritmos instantâneas, dando um efeito um tanto robótico e alienígena à voz. Foi o caso de "Believe", hit arrasa-quarteirões de <strong>Cher,</strong> que escancarou ao mundo esse som autotunado — seguido depois por "One More Time", do duo francês<strong> Daft Punk</strong>, os sucessos do próprio T-Pain e o aclamado álbum <em>808 &amp; Heartbreak </em>(2008), de<strong> Kanye West</strong>. </p>

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</div></figure>

<p>Historicamente, a voz esteve para a música assim como a rostidade esteve para o cinema e a fotografia na era da reprodução técnica — uma espécie de último aceno da aura. O Auto-Tune representou uma fissura nessa auralidade ao manipular a voz, que era vista como a conexão mais pura, humana e íntima, a última fronteira entre o cantor e o ouvinte. Por volta de 2009, vivia-se uma relação de amor e ódio com o software. Embora cada vez mais usado no dia a dia dos estúdios em diversos gêneros musicais, o Auto-Tune era criticado por destruir uma certa autenticidade artística.&nbsp;</p>

<p>"Nos últimos 10 anos, vimos muitos bons músicos sendo afetados por essa nova manipulação digital da voz humana, e sentimos que já basta", declarou<strong> Ben Gibbard</strong>, frontman da banda <strong>Death Cab For Cutie</strong>, ao jornal inglês The Guardian, em 2009. Naquele ano, ele apareceu ao Grammy com um adesivo manifestando sua contrariedade ao Auto-Tune. "A nota que não está tão perfeitamente afinada dá à gravação alma e caráter real. É como as pessoas realmente cantam", disse.</p>

<p class="has-medium-font-size"><strong>Os pixels da voz</strong></p>

<p>No Brasil, a vida-música de <strong>Gal Costa</strong> exprimiu bem essas contradições diante da nova tecnologia. Em entrevista à <em>Veja São Paulo,</em> em 2011, a Fatal criticava: "Hoje em dia, existem esses recursos… Até quem não tem tanto talento nem é muito afinado pode cantar. O Auto-Tune pode resolver problemas, mas isso não é genial nem ideal. Infelizmente, ele existe". Ao mesmo tempo em que exibia falas conservadoras, em seu álbum <em>Recanto </em>(2011), Gal explorava diversas possibilidades eletrônicas e digitais para a voz, chegando a gravar a faixa "Autotune Autoerótico", na qual fazia um improviso modulado pelo software homônimo e a sua voz se tornava uma beleza escura e pixelada.</p>

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</div></figure>

<p>Poucos meses antes do lançamento de <em>Recanto</em>,<strong> Caetano Veloso</strong>, que produziu e compôs o álbum, refletia sobre o afinador de voz em sua coluna no jornal <em>O Globo</em>. "A ideia é considerar o advento do Auto-Tune como algo semelhante ao advento do microfone elétrico", escreveu ele. Comentando sobre Kanye West, T-Pain, Cher e <strong>James Blake</strong>, ele afirma: "Percebemos que um uso artístico, propriamente musical, pode ser atingido nas relações entre o modo de cantar e o manuseio dos efeitos que essas ferramentas oferecem. Os critérios de julgamento da capacidade de cantar mudam com as novas tecnologias. Como mudaram quando microfones sensíveis deixaram para trás a necessidade de potência vocal".</p>

<p>Depois de todos esses anos, a visão de Caetano se revelou certeira. O uso corretivo do Auto-Tune foi sendo deixado de lado cada vez mais — que ficou sob o cargo de outro software, o Melodyne. Em entrevista à <em>Folha de São Paulo</em>, o produtor <strong>Rodrigo Gorky</strong> observou: “Hoje, é melhor pensar no Auto-Tune como o filtro do Instagram, enquanto o Melodyne é o Photoshop. O Auto-Tune é um efeito, como distorção, fuzz ou delay", disse o responsável por hits de <strong>Pabblo Vittar, Banda Uó e Bonde do Rolê.</strong></p>

<p>Foi no trap que o Auto-Tune assumiu um papel principal como recurso expressivo. As experimentações com o software colocaram as vozes dos MCs num entrelugar entre o orgânico e o robótico, envoltas em arranjos atmosféricos e texturais, repletos de espaços vazios e reverberações que arquitetam um ambiente de dubiedade às voz, que soam mais fluidas e deslizantes.&nbsp;</p>

<p>É difícil afirmar quem foi o pioneiro nos trabalhos com o Auto-Tune no rap brasileiro. Muitos apontam <strong>C4bal, Recayd Mob e Raffa Moreira </strong>como alguns dos responsáveis por abrirem esses caminhos, que hoje continuam se desenvolvendo em uma linhagem rica e diversa. Do piquezinho funk e clima ensolarado de <strong>Poze do Rodo e João Gomes</strong> em "Frio e Calculista" à ostentação marrenta de<strong> L7ennon</strong> em "Freio da Blazer", passando ainda pela libidinosa  "Tropa do Mais Novo" de <strong>Chefin e Vulgo FK</strong>: em vez de homogeneizar a voz humana, o Auto-Tune é usado para ressaltar os mais variados temperos e abordagens de flows dos MCs.</p>

<figure class="wp-block-embed is-type-rich is-provider-spotify wp-block-embed-spotify wp-embed-aspect-21-9 wp-has-aspect-ratio"><div class="wp-block-embed__wrapper">
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</div></figure>

<p>E se antes a voz modelada em Auto-Tune era considerada como anti-natural, artificial, desprovida de calor humano e, portanto, sem possibilidade de criar conexões emocionais, agora podemos ouvir o oposto: a voz irreal simboliza os paradoxos da vida em multitelas, a era de simultânea hiperconectividade e isolamento simultâneos. "Não Faz Isso Comigo Não", de <strong>TZ da Coronel</strong>, fala da solidão de um trabalhador do tráfico no plantão da boca, longe da pessoa que ama, enquanto observa as cargas indo e vindo e os fuzis passando. A voz de TZ é fria e distante, expressando uma angústia abissal que é ampliada pela sonoridade fria e inumana do Auto-Tune distorcendo os lamentos do MC. A matéria se desintegra em pixels e sua voz se transforma num som de sofrimento distante, traduzindo a nossa impotência de transformar essa realidade.</p>

<p>Sociólogo, filósofo e semiólogo francês, <strong>Roland Barthes</strong> cunhou a ideia de "grão da voz" para se referir à qualidade única e singular de uma voz individual. É a maneira particular como uma pessoa fala ou canta, que a torna diferente de todas as outras vozes. O grão, atesta Barthes, é o corpo na voz. Na era da edição com inteligência artificial, deep fake e filtros de imagem disseminados, essas fronteiras se embaralham também no som. Saímos do grão da voz para aquilo que o pesquisador Thiago Soares chamou de “píxel da voz”, que rompe com as premissas de que existiria uma voz “natural” e outra “processada”. A voz passa a ser a metamorfose do corpo que canta. O Auto-Tune poderia fazer nossa voz mais real que a própria realidade. Como os celulares com cada vez mais câmeras e maiores resoluções, como as imagens de paisagens naturais coloridíssimas em 4k nas telas dos televisores à venda em alguma loja de eletrodomésticos que parecem mais reais do que a própria natureza: de tão reais se tornam outra coisa.</p>

<p><strong><em>Esta matéria foi publicada originalmente na edição 139 da revista NOIZE, lançada com o vinil de <a href="https://api.noize.com.br/noize-record-club-apresenta-vicio-inerente-de-marina-sena/" title="">"Vício Inerente", de Marina Sena</a>, em 2023. <br></em></strong><br></p>

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<div class="wp-block-columns"><div class="wp-block-column"><figure class="wp-block-image size-full"><a href="https://api.noize.com.br/cangaceiro-e-rastaman-gilberto-gil-semeou-a-mpb-com-mudas-jamaicanas/#1"><img src="https://api.noize.com.br/wp-content/uploads/2023/06/gil-600.jpg" alt="" class="wp-image-154627"/></a><figcaption class="wp-element-caption"><strong><a href="https://api.noize.com.br/cangaceiro-e-rastaman-gilberto-gil-semeou-a-mpb-com-mudas-jamaicanas/#1" title="">Cangaceiro e rastaman: Gilberto Gil semeou a MPB com mudas jamaicanas<br></a></strong></figcaption></figure></div><div class="wp-block-column"><figure class="wp-block-image size-large"><a href="https://api.noize.com.br/pop-experimental-e-poliglota-conheca-babel-o-primeiro-disco-do-duo-131/#1"><img src="https://api.noize.com.br/wp-content/uploads/2023/09/131___________377775436_17894221940886146_4928234784891077606_n-1024x678.jpg" alt="" class="wp-image-156769"/></a><figcaption class="wp-element-caption"><strong><a href="https://api.noize.com.br/pop-experimental-e-poliglota-conheca-babel-o-primeiro-disco-do-duo-131/#1" title="">Pop experimental e poliglota: conheça “Babel”, o primeiro disco do duo 131&nbsp;<br></a><a href="https://api.noize.com.br/resenha-entrevista-hermeto-pascoal-porto-alegre-jazz-festival/"><br></a><a href="https://api.noize.com.br/kiko-dinucci-disseca-rastilho-no-projeto-discotecagem-comentada-balanco-e-furia-intercommunal-music/#1" target="_blank" rel="noreferrer noopener"><br></a></strong></figcaption></figure></div><div class="wp-block-column"><figure class="wp-block-image size-full"><a href="https://api.noize.com.br/exclusivo-assista-ao-clipe-de-e-preciso-ter-amor-de-bruno-berle/#1"><img src="https://api.noize.com.br/wp-content/uploads/2022/07/Featured-Image-Site-Noize-15.png" alt="" class="wp-image-145222"/></a><figcaption class="wp-element-caption"><strong><a href="https://api.noize.com.br/exclusivo-assista-ao-clipe-de-e-preciso-ter-amor-de-bruno-berle/#1" title="Exclusivo | Assista ao clipe de “É Preciso Ter Amor”, de Bruno Berle
">Exclusivo | Assista ao clipe de “É Preciso Ter Amor”, de Bruno Berle<br></a></strong></figcaption></figure></div></div>


<p>O rapper norte-americano <strong>T-Pain</strong> estava sentado tranquilo em um avião viajando à cerimônia do BET Awards de 2013 quando uma aeromoça chamou sua atenção. Era <strong>Ushe</strong>r, cantor de R&amp;B e amigo pessoal do rapper, que o chamava. T-Pain chegou com aquela conversa fiada inicial: &#8220;E aí, tudo bem? Como você tá?&#8221;. Mas Usher estava sério e preocupado, e então lhe disse: &#8220;Cara, você meio que estragou a música. Você estragou a música para os cantores de verdade&#8221;.</p>



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<p></p><div id="videoAd">*</div><br><script type="text/javascript">var t = "//des.smartclip.net/ads?type=dyn&plc=90854&sz=400x320&elementId=videoAd";t += "&ref=" + encodeURIComponent(window.top.document.URL);t += "&rnd=" + Math.round(Math.random()*1e8);var s = document.createElement("script");s.type = "text/javascript";s.src = t;document.body.appendChild(s);</script>



<p>Estrela de hits como &#8220;Buy U a Drank&#8221; (2007), T-Pain foi um divisor de águas na difusão do Auto-Tune como estilo vocal no rap e na música pop. Amado e (muito) odiado, o seu modo de usar e abusar do software — um afinador de voz digital — popularizou a ferramenta e provocou uma enorme controvérsia no cenário musical. A CNN chegou a descrevê-la como &#8220;a invenção que mudou a música para sempre&#8221;, enquanto artistas como <strong>Jay-Z</strong> revoltaram-se, o rapper chegou a pedir seu fim em &#8220;Death of Auto-Tune&#8221;, faixa de 2009.</p>



<p>O que era um mero afinador logo passou a ser cada vez mais explorado a partir de diversas abordagens criativas. O programa, que a princípio foi pensado para corrigir erros, ganhou um outro sentido: um recurso expressivo, uma sonoridade única, capaz de dar vazão a novas identidades sônicas.</p>



<p>Curiosamente, as sementes que dariam no Auto-Tune cresceram bem distante da indústria fonográfica. O inventor do software é o norte-americano<strong> Andy Hildebrand</strong>, engenheiro elétrico que trabalhava na Exxon Mobil, uma das maiores companhias de extração de petróleo do mundo.  O cientista era especialista em processamento de dados sísmicos, que são empregados para localizar petróleo no solo. Após explodir dinamite no solo, ele captava as reverberações a partir de um geofone. &#8220;Matematicamente, é como sair na chuva durante uma tempestade de raios, fechar os olhos e, através do som ecoado pelo trovão, determinar o formato das nuvens&#8221;, contou ele em depoimento à série documental <em>This Is Pop </em>(2021)<em>.</em></p>



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<p>Certo dia, uma amiga pediu a Hildebrand, brincando, que ele criasse uma máquina que a faria cantar de forma afinada. Ele então percebeu que a lógica do seu trabalho com sistemas geológicos poderia ser aplicada para desenvolver esse programa e montou várias equações e problemas matemáticos para torná-lo possível em termos de computação. Quatro meses depois, o Auto-Tune estava pronto.</p>



<p>A princípio, o Auto-Tune era uma ferramenta para reparar a desafinação, e o impacto foi praticamente imediato. Se, antes, os artistas ficavam uma semana no estúdio para gravar os vocais, o novo dispositivo reduziu esse tempo para metade de um dia. Hildebrand costuma contar um caso curioso: &#8220;Um produtor muito famoso me abordou e disse: &#8216;Andy, você mudou a minha vida. Meu trabalho era encontrar pessoas que cantavam bem e agora eu só tenho que achar pessoas bonitas&#8221;.</p>



<p>Por um bom tempo o uso do Auto-Tune foi mantido na surdina, evitando levantar polêmicas sobre a competência e o talento dos cantores. Mas começaram a surgir usos inesperados da ferramenta, que não correspondiam às intenções de seu criador. Ao colocar o ajuste do programa no 0, a voz fazia mudanças de ritmos instantâneas, dando um efeito um tanto robótico e alienígena à voz. Foi o caso de &#8220;Believe&#8221;, hit arrasa-quarteirões de <strong>Cher,</strong> que escancarou ao mundo esse som autotunado — seguido depois por &#8220;One More Time&#8221;, do duo francês<strong> Daft Punk</strong>, os sucessos do próprio T-Pain e o aclamado álbum <em>808 &amp; Heartbreak </em>(2008), de<strong> Kanye West</strong>. </p>



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<p>Historicamente, a voz esteve para a música assim como a rostidade esteve para o cinema e a fotografia na era da reprodução técnica — uma espécie de último aceno da aura. O Auto-Tune representou uma fissura nessa auralidade ao manipular a voz, que era vista como a conexão mais pura, humana e íntima, a última fronteira entre o cantor e o ouvinte. Por volta de 2009, vivia-se uma relação de amor e ódio com o software. Embora cada vez mais usado no dia a dia dos estúdios em diversos gêneros musicais, o Auto-Tune era criticado por destruir uma certa autenticidade artística.&nbsp;</p>



<p>&#8220;Nos últimos 10 anos, vimos muitos bons músicos sendo afetados por essa nova manipulação digital da voz humana, e sentimos que já basta&#8221;, declarou<strong> Ben Gibbard</strong>, frontman da banda <strong>Death Cab For Cutie</strong>, ao jornal inglês The Guardian, em 2009. Naquele ano, ele apareceu ao Grammy com um adesivo manifestando sua contrariedade ao Auto-Tune. &#8220;A nota que não está tão perfeitamente afinada dá à gravação alma e caráter real. É como as pessoas realmente cantam&#8221;, disse.</p>



<p class="has-medium-font-size"><strong>Os pixels da voz</strong></p>



<p>No Brasil, a vida-música de <strong>Gal Costa</strong> exprimiu bem essas contradições diante da nova tecnologia. Em entrevista à <em>Veja São Paulo,</em> em 2011, a Fatal criticava: &#8220;Hoje em dia, existem esses recursos… Até quem não tem tanto talento nem é muito afinado pode cantar. O Auto-Tune pode resolver problemas, mas isso não é genial nem ideal. Infelizmente, ele existe&#8221;. Ao mesmo tempo em que exibia falas conservadoras, em seu álbum <em>Recanto </em>(2011), Gal explorava diversas possibilidades eletrônicas e digitais para a voz, chegando a gravar a faixa &#8220;Autotune Autoerótico&#8221;, na qual fazia um improviso modulado pelo software homônimo e a sua voz se tornava uma beleza escura e pixelada.</p>



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<p>Poucos meses antes do lançamento de <em>Recanto</em>,<strong> Caetano Veloso</strong>, que produziu e compôs o álbum, refletia sobre o afinador de voz em sua coluna no jornal <em>O Globo</em>. &#8220;A ideia é considerar o advento do Auto-Tune como algo semelhante ao advento do microfone elétrico&#8221;, escreveu ele. Comentando sobre Kanye West, T-Pain, Cher e <strong>James Blake</strong>, ele afirma: &#8220;Percebemos que um uso artístico, propriamente musical, pode ser atingido nas relações entre o modo de cantar e o manuseio dos efeitos que essas ferramentas oferecem. Os critérios de julgamento da capacidade de cantar mudam com as novas tecnologias. Como mudaram quando microfones sensíveis deixaram para trás a necessidade de potência vocal&#8221;.</p>



<p>Depois de todos esses anos, a visão de Caetano se revelou certeira. O uso corretivo do Auto-Tune foi sendo deixado de lado cada vez mais — que ficou sob o cargo de outro software, o Melodyne. Em entrevista à <em>Folha de São Paulo</em>, o produtor <strong>Rodrigo Gorky</strong> observou: “Hoje, é melhor pensar no Auto-Tune como o filtro do Instagram, enquanto o Melodyne é o Photoshop. O Auto-Tune é um efeito, como distorção, fuzz ou delay&#8221;, disse o responsável por hits de <strong>Pabblo Vittar, Banda Uó e Bonde do Rolê.</strong></p>



<p>Foi no trap que o Auto-Tune assumiu um papel principal como recurso expressivo. As experimentações com o software colocaram as vozes dos MCs num entrelugar entre o orgânico e o robótico, envoltas em arranjos atmosféricos e texturais, repletos de espaços vazios e reverberações que arquitetam um ambiente de dubiedade às voz, que soam mais fluidas e deslizantes.&nbsp;</p>



<p>É difícil afirmar quem foi o pioneiro nos trabalhos com o Auto-Tune no rap brasileiro. Muitos apontam <strong>C4bal, Recayd Mob e Raffa Moreira </strong>como alguns dos responsáveis por abrirem esses caminhos, que hoje continuam se desenvolvendo em uma linhagem rica e diversa. Do piquezinho funk e clima ensolarado de <strong>Poze do Rodo e João Gomes</strong> em &#8220;Frio e Calculista&#8221; à ostentação marrenta de<strong> L7ennon</strong> em &#8220;Freio da Blazer&#8221;, passando ainda pela libidinosa  &#8220;Tropa do Mais Novo&#8221; de <strong>Chefin e Vulgo FK</strong>: em vez de homogeneizar a voz humana, o Auto-Tune é usado para ressaltar os mais variados temperos e abordagens de flows dos MCs.</p>



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<p>E se antes a voz modelada em Auto-Tune era considerada como anti-natural, artificial, desprovida de calor humano e, portanto, sem possibilidade de criar conexões emocionais, agora podemos ouvir o oposto: a voz irreal simboliza os paradoxos da vida em multitelas, a era de simultânea hiperconectividade e isolamento simultâneos. &#8220;Não Faz Isso Comigo Não&#8221;, de <strong>TZ da Coronel</strong>, fala da solidão de um trabalhador do tráfico no plantão da boca, longe da pessoa que ama, enquanto observa as cargas indo e vindo e os fuzis passando. A voz de TZ é fria e distante, expressando uma angústia abissal que é ampliada pela sonoridade fria e inumana do Auto-Tune distorcendo os lamentos do MC. A matéria se desintegra em pixels e sua voz se transforma num som de sofrimento distante, traduzindo a nossa impotência de transformar essa realidade.</p>



<p>Sociólogo, filósofo e semiólogo francês, <strong>Roland Barthes</strong> cunhou a ideia de &#8220;grão da voz&#8221; para se referir à qualidade única e singular de uma voz individual. É a maneira particular como uma pessoa fala ou canta, que a torna diferente de todas as outras vozes. O grão, atesta Barthes, é o corpo na voz. Na era da edição com inteligência artificial, deep fake e filtros de imagem disseminados, essas fronteiras se embaralham também no som. Saímos do grão da voz para aquilo que o pesquisador Thiago Soares chamou de “píxel da voz”, que rompe com as premissas de que existiria uma voz “natural” e outra “processada”. A voz passa a ser a metamorfose do corpo que canta. O Auto-Tune poderia fazer nossa voz mais real que a própria realidade. Como os celulares com cada vez mais câmeras e maiores resoluções, como as imagens de paisagens naturais coloridíssimas em 4k nas telas dos televisores à venda em alguma loja de eletrodomésticos que parecem mais reais do que a própria natureza: de tão reais se tornam outra coisa.</p>



<p><strong><em>Esta matéria foi publicada originalmente na edição 139 da revista NOIZE, lançada com o vinil de <a href="https://api.noize.com.br/noize-record-club-apresenta-vicio-inerente-de-marina-sena/" title="">&#8220;Vício Inerente&#8221;, de Marina Sena</a>, em 2023. <br></em></strong><br></p>



<p class="has-text-align-center has-large-font-size"><strong>LEIA MAIS</strong></p>



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<figure class="wp-block-image size-full"><a href="https://api.noize.com.br/cangaceiro-e-rastaman-gilberto-gil-semeou-a-mpb-com-mudas-jamaicanas/#1"><img loading="lazy" decoding="async" src="https://i0.wp.com/api.noize.com.br/wp-content/uploads/2023/06/gil-600.jpg?resize=600%2C400&#038;ssl=1" alt="" class="wp-image-154627" srcset="https://i0.wp.com/api.noize.com.br/wp-content/uploads/2023/06/gil-600.jpg?w=600&amp;ssl=1 600w, https://i0.wp.com/api.noize.com.br/wp-content/uploads/2023/06/gil-600.jpg?resize=300%2C200&amp;ssl=1 300w, https://i0.wp.com/api.noize.com.br/wp-content/uploads/2023/06/gil-600.jpg?resize=221%2C147&amp;ssl=1 221w, https://i0.wp.com/api.noize.com.br/wp-content/uploads/2023/06/gil-600.jpg?resize=116%2C77&amp;ssl=1 116w, https://i0.wp.com/api.noize.com.br/wp-content/uploads/2023/06/gil-600.jpg?resize=150%2C100&amp;ssl=1 150w" sizes="auto, (max-width: 600px) 100vw, 600px" data-recalc-dims="1" /></a><figcaption class="wp-element-caption"><strong><a href="https://api.noize.com.br/cangaceiro-e-rastaman-gilberto-gil-semeou-a-mpb-com-mudas-jamaicanas/#1" title="">Cangaceiro e rastaman: Gilberto Gil semeou a MPB com mudas jamaicanas<br></a></strong></figcaption></figure>
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<figure class="wp-block-image size-large"><a href="https://api.noize.com.br/pop-experimental-e-poliglota-conheca-babel-o-primeiro-disco-do-duo-131/#1"><img loading="lazy" decoding="async" src="https://i2.wp.com/api.noize.com.br/wp-content/uploads/2023/09/131___________377775436_17894221940886146_4928234784891077606_n.jpg?resize=1024%2C678&#038;ssl=1" alt="" class="wp-image-156769" srcset="https://i2.wp.com/api.noize.com.br/wp-content/uploads/2023/09/131___________377775436_17894221940886146_4928234784891077606_n.jpg?resize=1024%2C678&amp;ssl=1 1024w, https://i2.wp.com/api.noize.com.br/wp-content/uploads/2023/09/131___________377775436_17894221940886146_4928234784891077606_n.jpg?resize=300%2C199&amp;ssl=1 300w, https://i2.wp.com/api.noize.com.br/wp-content/uploads/2023/09/131___________377775436_17894221940886146_4928234784891077606_n.jpg?resize=768%2C508&amp;ssl=1 768w, https://i2.wp.com/api.noize.com.br/wp-content/uploads/2023/09/131___________377775436_17894221940886146_4928234784891077606_n.jpg?resize=221%2C146&amp;ssl=1 221w, https://i2.wp.com/api.noize.com.br/wp-content/uploads/2023/09/131___________377775436_17894221940886146_4928234784891077606_n.jpg?resize=616%2C408&amp;ssl=1 616w, https://i2.wp.com/api.noize.com.br/wp-content/uploads/2023/09/131___________377775436_17894221940886146_4928234784891077606_n.jpg?resize=116%2C77&amp;ssl=1 116w, https://i2.wp.com/api.noize.com.br/wp-content/uploads/2023/09/131___________377775436_17894221940886146_4928234784891077606_n.jpg?resize=150%2C99&amp;ssl=1 150w, https://i2.wp.com/api.noize.com.br/wp-content/uploads/2023/09/131___________377775436_17894221940886146_4928234784891077606_n.jpg?w=1080&amp;ssl=1 1080w" sizes="auto, (max-width: 1000px) 100vw, 1000px" data-recalc-dims="1" /></a><figcaption class="wp-element-caption"><strong><a href="https://api.noize.com.br/pop-experimental-e-poliglota-conheca-babel-o-primeiro-disco-do-duo-131/#1" title="">Pop experimental e poliglota: conheça “Babel”, o primeiro disco do duo 131&nbsp;<br></a><a href="https://api.noize.com.br/resenha-entrevista-hermeto-pascoal-porto-alegre-jazz-festival/"><br></a><a href="https://api.noize.com.br/kiko-dinucci-disseca-rastilho-no-projeto-discotecagem-comentada-balanco-e-furia-intercommunal-music/#1" target="_blank" rel="noreferrer noopener"><br></a></strong></figcaption></figure>
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<figure class="wp-block-image size-full"><a href="https://api.noize.com.br/exclusivo-assista-ao-clipe-de-e-preciso-ter-amor-de-bruno-berle/#1"><img loading="lazy" decoding="async" src="https://i2.wp.com/api.noize.com.br/wp-content/uploads/2022/07/Featured-Image-Site-Noize-15.png?resize=600%2C400&#038;ssl=1" alt="" class="wp-image-145222" srcset="https://i2.wp.com/api.noize.com.br/wp-content/uploads/2022/07/Featured-Image-Site-Noize-15.png?w=600&amp;ssl=1 600w, https://i2.wp.com/api.noize.com.br/wp-content/uploads/2022/07/Featured-Image-Site-Noize-15.png?resize=300%2C200&amp;ssl=1 300w, https://i2.wp.com/api.noize.com.br/wp-content/uploads/2022/07/Featured-Image-Site-Noize-15.png?resize=221%2C147&amp;ssl=1 221w, https://i2.wp.com/api.noize.com.br/wp-content/uploads/2022/07/Featured-Image-Site-Noize-15.png?resize=116%2C77&amp;ssl=1 116w, https://i2.wp.com/api.noize.com.br/wp-content/uploads/2022/07/Featured-Image-Site-Noize-15.png?resize=150%2C100&amp;ssl=1 150w" sizes="auto, (max-width: 600px) 100vw, 600px" data-recalc-dims="1" /></a><figcaption class="wp-element-caption"><strong><a href="https://api.noize.com.br/exclusivo-assista-ao-clipe-de-e-preciso-ter-amor-de-bruno-berle/#1" title="Exclusivo | Assista ao clipe de “É Preciso Ter Amor”, de Bruno Berle
">Exclusivo | Assista ao clipe de “É Preciso Ter Amor”, de Bruno Berle<br></a></strong></figcaption></figure>
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A voz esteve para a música assim como a rostidade esteve para o cinema e a fotografia na era da reprodução técnica — uma espécie de último aceno da aura.

Gal Costa, Caetano Veloso e a história do Auto-Tune no Brasil

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