
Ancestral e contemporâneo dialogam na discografia de solo de Ligia Kamada, que inclui Yermandê (2017) e o atual, Kamadas (2025). Botar o próprio nome no título é, muitas vezes, assumir a responsabilidade de falar sobre si, de forma mais confessional. No novo trabalho, a artista faz isso – reflete, por exemplo, sobre experiência de retirada do útero, durante a pandemia – mas, também chama o pensamento coletivo para seu palco. Produzido por Pipo Pegoraro, vencedor do Grammy Latino por Em Nome da Estrela (2023), de Xênia França, Kamadas transita entre os tambores brasileiros e a música eletrônica ora fervente, ora experimental e minimalista.
Mas, antes, vamos ao contexto: Ligia é cantora, compositora e produtora. Excursionou em seu trabalho com a música pela Europa durante sete anos, até voltar ao Brasil e lançar o álbum de estreia, que mergulhava nas raízes brasileiras. Tem também um álbum em parceria com SKL, Entre (2017). Ela também se dedica à produção de trilhas sonoras – sua criação, “Mãe de Todos os Frutos”, integrou a trilha do filme francês Du Chocolat Pour Sauver L’Amazonie (2022).
Já neste novo trabalho, Ligia reflete suas experiências mais íntimas. A primeira faixa, “Sacode”, já é um prelúdio, um convite para embarcar em suas diversas camadas sonoras e temáticas. Com Jhayam, ela canta: “quem se questiona, quem julga uma pele branca?”. A vivência como pessoa amarela é inspiração constante para Ligia. Está em todas as faixas, mas se engrandece em “Tudo”, escrita em parceria com a poeta Clara Baccarin (que também assina “Talvez em Março”.
“Essa letra fala de atravessamentos raciais e do enfrentamento corajoso da própria história: “encaro o bicho de frente”, diz um dos versos, reconhecendo que ele também mora dentro. Uma faixa sobre enfrentar desafios, reconhecer a nossa história e nossos privilégios, recriando caminhos e reinventando-se”, conta ela, em faixa a faixa exclusivo para a Noize.
Destoando da potência de “Tudo” está “Vou no Voo”, canção inspirada nos pais, em que ela canta com voz doce, como quem os nina de volta. O ápice dessa confessionalidade chega na metade do disco, na literal “Sem Útero”. “Todo esse disco carrega muito desse processo de aceitação da não maternidade como escolha e prioridade na vida, e da decisão de retirar esse órgão que, por séculos, foi marcado por tabus, estigmas e opressões, especialmente dentro da lógica patriarcal e cristã”, comenta Ligia. Reflete, também, sobre o medo que ronda as mulheres durante toda a vida – da não-aceitação na sociedade, medo de andar sozinha, etc. A solução encontrada por ela – assim como muitas outras – mora na música, o motivo real e maior de sua criação.
Leia o faixa a faixa de Kamadas pela própria artista:
“Sacode”: Essa foi uma das últimas músicas a serem gravadas, mas senti que ela deveria abrir o disco. Carrega uma força simbólica: fala sobre sacudir as estruturas, retomar a confiança em mim e em nós. É sobre mudança e fé no movimento. Desde pequena, sempre fui muito questionadora, e nessa faixa levanto várias perguntas, provocando reflexões. Foi composta após anos complexos de pandemia, e sinto que estamos, de fato, precisando mexer nas bases — nas formas de ver, pensar, agir e viver — com urgência.
A participação do Jhayam foi algo muito especial. Tenho muita admiração em seu trabalho e atuação como artista e pessoa, e a energia entre nós fluiu de maneira leve e natural. Ele já chegou soltando a boa no estúdio Caso Raro, com o produtor Pipo Pegoraro, e a coisa simplesmente aconteceu.
O coro também foi um momento marcante e potente de reconhecimento e cura. É formado por artistas nipo-brasileiros — meu pai, Tetsuo Kamada, grande motor e incentivador da minha caminhada musical, minha irmã Leticia Aya Kamada, e o cantautor Victor Kinjo. Juntos, trouxemos o canto que reverbera nossa ancestralidade, pertencimento e esperança.
“Tudo“: Em parceria com a poeta Clara Baccarin — vizinha de montanhas na pequena cidade serrana onde vivo —, “Tudo” nasceu durante a pandemia, dentro do processo do álbum visual Povo em Pé (disponível no meu canal no YouTube). A poesia de Clara me tocou profundamente e senti vontade de seguir as rimas e criar a música. Mais adiante, após conhecer Poroiwak no curso “Amarelitude”, surgiu o impulso de incorporar à música um texto dele, que chegou junto com sua voz e abre a faixa como um manifesto. A canção fala de atravessamentos raciais e do enfrentamento corajoso da própria história: “encaro o bicho de frente”, diz um dos versos, reconhecendo que ele também mora dentro. Uma faixa sobre enfrentar desafios, reconhecer a nossa história e nossos privilégios, recriando caminhos e reinventando-se.
“Peixe Acrobata“: Essa canção nasceu após uma residência artística que participei em Lorena, no projeto Entre Serras. Estávamos imersos em processos criativos ao lado de artistas da dança, do corpo, de diversas linguagens — eu participei ao vivo na trilha sonora desses encontros. Foi um momento de grande comoção coletiva, e temas como maternidade, útero, ancestralidade e questões ligadas à mulher vieram à tona com força.
Dias depois, uma das participantes, a Juliana Maria, compartilhou um poema inspirado nesse encontro, e aquilo me atravessou. Na hora, senti o impulso de continuar aquele texto, e assim nasceu a música. Eu mesma estava passando por um processo de despedida do meu útero, devido a um mioma, e foi intenso criar a partir desse lugar tão visceral — do ventre da mãe, mas também da terra.
A canção fala sobre o corpo-útero e também sobre o corpo-terra e questiona: como temos tratado o feminino no mundo? Quantas violências nossos corpos — e os corpos das nossas ancestrais — carregam? E quais as consequências disso?
“Vou no Voo“: Essa música nasceu de manhãs especiais, por volta do mês de junho, quando os margaridões — flores amarelas gigantes, parecidas com girassóis — explodem em frente ao meu quarto e pela montanha onde vivo. Acordar e dar de cara com aquele espetáculo, ver as brumas se dissipando com o voo dos pássaros, é uma experiência divina.
A partir dessa sensação de encantamento e gratidão por viver tão imersa na natureza, veio o desejo de agradecer à minha mãe, ao meu pai e a todos os meus ancestrais. Também é um canto de louvor a Oxóssi, que sinto muito presente nessas matas, como guia e protetor. Okê Arô!
“Sem Útero“: Essa música foi, de fato, um parto — um parto sem útero. Todo esse disco, aliás, carrega muito desse processo de aceitação da “não maternidade” como escolha e prioridade na vida, e da decisão de retirar esse órgão que, por séculos, foi marcado por tabus, estigmas e opressões, especialmente dentro da lógica patriarcal e cristã.
Fui convidada pela minha amiga Nicole Aun para participar do podcast Atreva-se – Nomear para Combater, onde falamos sobre o livro Do que falamos quando falamos de estupro, da indiana Souhaila Abdulali. Em um trecho, ela questiona: o que as mulheres poderiam ter realizado se não vivessem com medo? Medo de sair à noite sozinhas, de serem violentadas, desrespeitadas… Quanto tempo da nossa vida é consumido pela reparação das dores, pela luta para nos curarmos emocionalmente e por medo?
Essa música fala sobre tudo isso. E também sobre como a música sempre foi meu norte, minha guia — mais do que qualquer outra coisa.
“Talvez em Março“: Mais uma parceria com Clara Baccarin, essa música surgiu após minha cirurgia, quando comecei a sentir o renascimento se aproximando. Era como se, depois das águas de março — que desceram morro abaixo, escorreram, lavaram — algo novo estivesse brotando. A participação especial de Larissa Oliveira, com seu trompete, chegou no final do processo para fechar e embelezar a canção. Desde a adolescência uma das minhas grandes referências é a cantora Sade, e sinto que essa música carrega algo da sua atmosfera — uma delicadeza envolvente. As camadas vocais também estão bem presentes aqui, como em todo o disco. Gosto muito de explorar essas texturas com a voz, sobrepor nuances, abrir caminhos de escuta mais sutis e sensoriais.
“Shukufuku: “Shukufuku” significa “bênção” em japonês e é uma das canções mais solares e fluídas do álbum. Ela nasceu após meu renascimento, da conexão profunda com o lugar onde habito — as águas da Serra da Mantiqueira. A parceria com a cantora e compositora Ceumar, que admiro e conheço a muitos anos, fez todo o sentido. Ela nasceu na Mantiqueira, do lado mineiro, e trouxe sua voz doce, sua poesia leve e uma energia elevada que encheu a faixa de presença. É uma das canções que mais gosto do disco. O arranjo que o Pipo Pegoraro criou juntamente ao violoncelo de Erica Navarro trouxe um fluxo orgânico e gostoso, com um ritmo que segue o curso das águas doces que descem das montanhas. É uma música para dançar, para agradecer, para celebrar as bênçãos — as que reconhecemos e as que ainda estão a caminho.
“De Qual Substância“: Essa faixa também integra o álbum visual Povo em Pé (YouTube). É uma parceria com o poeta arrudA, cuja escrita eu admiro muito — ele tem uma forma sintética e delicada de dizer, como em haikais, com uma precisão que encanta.
Nos tornamos amigos e ele também participou do meu primeiro disco solo. Em certo momento ele veio morar bem perto daqui, e essa convivência foi fértil para colaborações. “De Qual Substância” é como uma passagem: uma paisagem que sopra, um respiro poético que nos aproxima. Uma brisa leve em meio ao disco, que convida à contemplação.
“Aya e Skowa“: Essa foi a última música a entrar no disco. Ela nasceu de um acontecimento marcante e doloroso: a perda do companheiro da minha irmã, o consagrado músico paulistano Skowa, em junho de 2024. A dor e o amor nos aproximou, nos colocou juntas, e a música nasceu como um rito, como um abraço.
Chamei Aya para cantar comigo e foi um momento muito especial. Gravamos de forma simples e caseira — só um microfone aberto, captando o violão e as vozes. É uma faixa crua e íntima, que carrega o silêncio e afeto, memória e presença.
“O Amor é um Ato“: As duas últimas músicas têm essa atmosfera de lar, de aconchego. Também é uma parceria com o poeta Arruda e foi gravada em casa, em um desses encontros que a vida traz de surpresa. Jules e Farah Hodak Bargui, filhos de um primo francês, estavam de visita e se animaram para cantar e tocar. Criamos na hora uma versão em francês que virou um presente inesperado. Uma faixa que chegou sem planejar, mas que encerra o disco lembrando que o amor é um gesto, um exercício, um ato. Um encerramento afetivo para um disco que mergulhei fundo nas camadas sonoras, do corpo, da terra e da alma.