Sujar os dedos de poeira vasculhando caixas de sebos de discos. Espirrar de rinite alérgica enquanto prova uma peça de brechó. Esperar muito tempo até que fosse concluído o download de uma música, que você achou em um blog suspeito e talvez nem fosse o fonograma prometido no nome do arquivo. Quando Tim Bernardes e Guilherme d’Almeida, fundadores d’O Terno, tinham seus 13 anos e estavam se tornando músicos, era mais ou menos assim a rotina de um adolescente paulistano de classe média interessado nos anos 1960 e 70.
No início dos anos 2000, Tim e Guilherme eram aqueles moleques que curtiam muito mais o Arnaldo Baptista, que eles ouviram em casa e fora citado vez ou outra em algum programa alternativo da MTV, do que uma banda como o Foo Fighters, que não saía da grade de programação. “Eu não tenho nada contra o Foo Fighters, tá?”, explica Guilherme, vulgo Peixe. “Mas não teve quem me convencesse que o Foo Fighters era mais rock do que Os Mutantes. Enfim, tem bandas incríveis em todas as décadas, nenhuma ficou carente, mas sinto que a gente estava em uma geração em que a padronização do som de rock deu uma saturada”.
Tim concorda: “A gente é um exemplo de uma coisa que estava no ar. Quando tinha 14 anos e estava formando a banda, não era só a gente. Todo mundo estava maluco com aquela coleção da Rhino, Nuggets (1998), de sons de garagem. A gente via esse movimento, sentia isso, e essa música nos dava um gás. A música que estava no rádio nos anos 1990/2000 era muito padronizada. A gente achava feia a estética do mainstream padrão”.
“Na música, tem uma parte que é afetiva, que nem uma comida que você come na casa dos seus pais quando é criança. E sonoramente, a gente tinha relações afetivas com músicas das décadas de 1960 e 70, que eram muito fortes. Mas o que mais nos pegava era aquela liberdade criativa na música pop mainstream e a falta de padronização da indústria. Era muito diferente o que o Gil estava fazendo do que o Caetano estava fazendo, e tudo passava na TV, no rádio. Era a música pop”, comenta Peixe.
Pra compreender de onde vem O Terno, é preciso lembrar que eles são fruto de um contexto em que, ok, se você estivesse interessado na cena mod dos anos 60, era possível saber que existiu uma banda na Inglaterra chamada The Kinks, por exemplo — talvez “You Really Got Me” tenha até tocado no rádio uma vez ou outra. Mas você não achava um disco do Kinks nas lojas. Não havia sequer uma fonte minimamente confiável, como o Discogs ou a Wikipédia, pra conhecer os integrantes e a sua discografia. Se você quisesse vestir um terno parecido com os que a banda usava nas fotos, teria que contar com muita sorte pra achar em um brechó ou no armário de um parente. A globalização ainda estava em curso, a digitalização portátil que vivemos hoje nem era imaginada, e qualquer migalha de informação era preciosa.
“Resgatar a estética, naquela época, era um grande lance. Hoje em dia, é muito fácil, as pessoas têm roupas bacanas, fotos monocromáticas… Naquela época, era uma batalha conseguir uma calça justa, sabe? Era tipo: ‘Pô, achei um terno xadrez do meu avô!’. Você tinha que garimpar pra caralho, e a gente garimpava música também, tanto no Napster quanto em loja de discos. Isso tem muito a ver com uma geração. Não era só O Terno, tinha outras bandas também, e o garimpo era muito parte da coisa. Então, o seu processo criativo já vinha com uma curadoria”, avalia Tim.
Guilherme lembra com muito carinho daquele momento em que começou a trocar referências e a tocar com Tim, quando O Terno ainda era uma dupla, e o seu amigo do colégio estava lhe mostrando as primeiras composições de sua vida. “Sou até suspeito pra falar, porque o Tim é o meu compositor brasileiro favorito na atualidade. Pra mim, dá muito orgulho trabalhar com ele e ver essa evolução”, diz. Nesse sentido, “66”, a música que deu nome ao álbum de estreia deles, é uma canção que simboliza muito todo o contexto ao qual O Terno estava inserido na virada dos anos 2000 para os 2010.
“[Na letra de ’66’], quando estou dizendo ‘Pois já fizeram coisa boa no passado/ Que eu misturo como eu quero/ Com mais tudo que eu quiser’, é tipo assim: são coisas que já foram feitas, mas quem já misturou este som dos Mutantes com este timbre de bateria do Black Sabbath e com uma letra que podia ser do Rumo, sabe assim? Era quase um trabalho que, em artes visuais, seria uma colagem”, comenta Tim.
“Pra mim, é muito marcante o dia em que ele mostrou a música ’66’. Ele falou: ‘Cara, fiz uma música’. E eu falei: ‘Pô, que daora. Mostra’. E aí tocou, e eu falei: ‘Caralho, bicho…’. Achei que ele ia me mostrar uma coisinha boba, e já era uma composição muito bem estruturada, com partes, com um conceito, com uma letra boa”, lembra Peixe, acrescentando que, desde então, percebeu o potencial que havia no tom sincero que caracterizava os versos do amigo.
“Foi muito forte o pilar da sinceridade. A gente achava engraçado bandas do mesmo nicho, de 16 anos, que compunham sobre carros e garotas: ‘Nossa, ninguém tem carro aqui’ [risos]. Essa sinceridade acabou virando um grande trunfo na mão do Tim. Acho que ele percebeu que, quanto mais específico fosse ficando, também ficava mais universal. Os comentários que mais chegam na gente são: ‘Nossa, como vocês sabem da minha vida’, ‘tal música é exatamente o que eu passei’, ‘esta música sou eu completamente’”.
Atualmente, O Terno está em meio a uma grande turnê de despedida, após quatro álbuns, cujas faixas acumulam milhões de plays nas plataformas de streaming. Mas quando eles começaram, nada disso estava no radar. “Naquela época, tinha uma coisa assim: ‘Ah, ninguém gosta de música boa hoje em dia’, ‘não dá pra fazer sucesso com música diferente’. Com a internet, a gente tinha uma intuição: ‘Cara, não sei, acho que dá, hein? A gente está louco pra ouvir alguma coisa diferente, deve ter mais um monte de gente assim também’. E era um palpite acertado”, diz Tim.
Antes da profissionalização, Bernardes e d’Almeida já tinham assumido o nome Terno para o seu projeto, ainda sem o “O” na frente, e é interessante a polissemia do termo. “Pra mim, o significado que mais me interessa no nome é o de ternura. Hoje, é o que mais faz sentido, mais do que o de ser um trio, mais do que as bandas mods que a gente escutava quando era adolescente. Acho que tem uma ternura na fabricação, é uma banda artesanal no final das contas”, diz Peixe.
Mas Tim ressalta que a proposta sempre foi que o grupo tivesse três membros: “Um ‘trio mod tropicalista paulistano’, era meio essa a ideia do começo d’O Terno, nessa fase mais roqueira”. “A questão de ser um trio aparecia desde o começo, mesmo quando ainda era uma dupla. A ideia sempre foi ter um baterista que, antes de entrar o Victor [Chaves], trocou várias vezes. A gente chamava quem podia tocar”, lembra Guilherme, que segue:
“E foi um formato que a gente se apaixonou um pouco pelo desafio. Em uma banda que não tem guitarra base, como não soar vazio na hora do solo? Cada um precisava ser dois, musicalmente, pra não parecer que tem buraco. Então, o baixo e a bateria tinham coisas mais fraseadas. Existe uma magia no trio, que — simbolicamente e concretamente — passa muito por um rolê de apoio. Três é o número mínimo de apoios que uma mesa precisa ter pra ficar de pé. Com dois, não fica. Em trio, fica de pé. A estrutura é sólida, mas usando o menor número de coisas possível”.
A entrada de Victor Chaves, em 2009, marcou o momento em que a banda, agora chamada de O Terno, passou a ser vislumbrada como uma profissão viável. Foi aí que eles começaram a ter mais repertório autoral, que era inicialmente completado por obras de outros compositores, especialmente de Maurício Pereira — pai de Tim, artista paulistano conhecido por seu trabalho solo e por sua dupla com André Abujamra, Os Mulheres Negras.
Por alguns anos, Tim, Peixe e Victor tocaram, tocaram, tocaram e tocaram mais um pouco, basicamente na casa de Tim e em pequenas casas de shows. Até que, finalmente, gravaram o seu disco de estreia: 66 (2012), que chegou fazendo barulho. Na época, O Globo o descreveu como “um dos mais impressionantes discos de estreia de uma banda brasileira”. A faixa-título se transformou em um clipe, que acabou premiado como o Clipe do Ano, no Prêmio Multishow. A banda, por sua vez, ganhou o troféu de Aposta MTV, no Video Music Brasil de 2012.
“A gente estava tocando bastante essas músicas há uns três anos, mas quando o primeiro disco saiu, foi tipo: ‘Agora é uma banda que existe, profissional, que trabalha com isso’. Teve o primeiro clipe, entrou na MTV, produtoras marcaram shows, a gente tocou pela primeira vez em casas de show que não eram simplesmente os bares do nosso bairro. Viajamos pela primeira vez pra tocar, pegamos avião. A gente tocou bastante, fez muitos shows pequenos, shows mais cheios, shows vazios. Foi o início da nossa carreira de músico profissional e de encontrar o nosso som”, lembra Tim.
“Tinha muita animação, muita juventude. E foi um movimento muito importante, de as ideias saírem do quartinho onde a gente ensaiava e começarem a ir para o mundo. Aconteceu muita coisa em um espaço relativamente curto de tempo”, conta Guilherme. “Foi aquele período em que os amigos começam a parar de ir no show e começa a vir gente que você não conhece. Foi nessa época que começou de fato a se formar um público”.