Você já comentou sobre o compromisso, inclusive ético, que sente perante a necessidade de elaborar reflexões sobre (e caminhos para) a cultura musical do RS. Havia uma intenção de adentrar a seara regional para poder trazer a ela novos valores éticos e estéticos, arejando-a de dentro pra fora?
Nunca me ocorreu “adentrar na seara regional”, porque nunca deixei de estar lá, bem como em outros campos. Era absolutamente intuitivo, natural para mim. Quando comecei a dar vazão àquela parte do meu imaginário não olhava criticamente para o que fazia nem avançava para questões identitárias. Isso viria com o tempo. O ambiente tradicionalista era outra coisa. Nunca tive intenção de entrar lá. Que seus “soldados”, conforme dizia Barbosa Lessa, fizessem com suas convicções o que quisessem, desde que “dentro da rigorosa discriminação de seus limites necessários”, como desejou Augusto Meyer para eles em seu começo, algo que não se cumpriu graças às pretensões hegemônicas do movimento. Sou desde sempre ligado ao sul do RS, à Pelotas multicultural, ao Uruguai e à Argentina. E isso é tudo. Quanto à ética, como epígrafe de A Estética do Frio – Conferência de Genebra, escrevi: “sinto-me um pouco como aqueles para quem, na descrição de Paul Valéry, o tempo não conta; aqueles que se dedicam a uma espécie de ética da forma, que leva ao trabalho infinito”. Graças talvez a esse compromisso íntimo, de a cada trabalho avançar em minhas conquistas formais, tendo em mente a contribuição que isso possa trazer ao meu entorno, nunca perdi o entusiasmo criativo. Mas não me restrinjo à ética da forma. Com relação ao RS, sinto-me comprometido com o esforço para tirar dos nossos ombros o fardo ideológico e estético passadista que não nos deixa avançar coletivamente em nossa diversidade. O novo em estética no RS precisa passar por novas abordagens das questões identitárias. A Estética do Frio é uma insurreição identitária e estética. Para que aconteça, é preciso que o tempo não conte. Esta é uma postura ética. Gostaria que outros artistas contemporâneos se mobilizassem nesta direção, cada um a seu modo, claro. Estéticas do frio. Por outro lado, não acho que esse tipo de compromisso deva ser exigido dos artistas. É apenas meu jeito de funcionar, sem dissociar o que crio do lugar onde vivo, da sociedade em que estou inserido.
Por seu conceito tão bem marcado, Ramilonga carrega um certo tom programático, como se fosse um manifesto — ainda que não seja exatamente isso. Dentre os “pilares” do “manifesto”, você elenca sete valores (Rigor, Profundidade, Clareza, Concisão, Pureza, Leveza, Melancolia), pinçados da sua percepção sobre a espacialidade geográfica gaúcha, e ao fazer o disco, você buscou trazer tais ideias pra produção do álbum. Como foi esse trabalho de transpor a geografia ao som?
Assim como não acredito em determinismo do tipo “no frio se cria de um modo, no calor de outro”, não posso dizer que transpus a geografia ao som. Apenas usei-a como sugestão formal. Quando a Bjork fala que sua música é como os gêiseres da Islândia, entendemos perfeitamente, não? Comigo não é diferente. Quando me perguntei como seria uma estética do frio, depois de ver cenas de um carnaval fora de época em Fortaleza, aquela profusão de cores, expansividade e espontaneidade coletivas, aquele calor, o mar, tudo dentro de uma estética dos trópicos, voei em pensamento para o lugar de onde viera. Minha imaginação sempre foi visual. O que encontrei no fundo do meu imaginário foi uma imagem clássica do extremo sul: planícies verdes (litorâneas, mas também pampeanas, retas ou suavemente onduladas), poucos elementos sobre elas, poucas pessoas. Daquela paisagem tão emblemática para nós, mas despida da doutrinação tradicionalista, fui extraindo valores estéticos: rigor, profundidade, clareza, concisão, pureza, leveza, melancolia. A milonga logo me pareceu a expressão mais justa daquilo que eu estava vendo, rigorosa, concisa etc. Segundo Lauro Ayestarán, a milonga nasceu no ambiente urbano de Montevideo e migrou para o campo, onde encontrou seu habitat natural. É uma música negra como aquela que animava o carnaval de Fortaleza. O RS não estava tão distante assim de tudo. Nas milongas de Ramilonga, os valores do frio se traduziram na escolha dos instrumentos, no modo de cantar, nos arranjos, no “manifesto” do encarte ou, claro, nas composições em si.
Gostaria que você falasse um pouco sobre a sonoridade do Ramilonga, que foi muito inovadora. Quais características da milonga faziam dela um tipo de música propício à ideia de uma universalização de algo regional?
O uruguaio Alfredo Zitarrosa dizia que a milonga era o blues de Montevideo e se fundia facilmente com outros gêneros, o que é típico da musicalidade africana. Disso nasceu a melhor música popular das Américas, do rock à milonga. No contexto brasileiro, a milonga é a música mais identificada como sendo nossa, do RS, e podemos fundi-la facilmente àquilo que é mais identificado como sendo do Brasil tropical. Sua origem negra é determinante neste sentido. Jorge Drexler me comentou que todo roqueiro uruguaio toca a sua milonguita. Ela está sempre à mão, como quando um carioca pega uma caixinha de fósforos e sai um samba. Com a sonoridade do Ramilonga quis tirá-la do escaninho do folclore e abri-la para uma musicalidade sem fronteiras. Não são o harmonium, o sitar e a as tablas instrumentos perfeitos para a milonga pampeana, longa, reflexiva, mântrica? E o contrabaixo do Nico Assumpção? Jazz, blues ou rock, muito do que vem à tona em Ramilonga é música afro-americana. Acho que a pouca abertura do Brasil ao que fazemos no RS deve-se à pouca presença negra em nossa música, algo que foi interrompido na geração de Lupicínio Rodrigues, nosso compositor maior. Vamos acabar com isso.
Como você chegou à obra de João da Cunha Vargas e o que o levou a trazê-lo para o álbum?
Conheci o poema “Gaudério” quando lancei A paixão de V segundo ele próprio, através do declamador Sebastião Fonseca de Oliveira. Musiquei-o cantando à capela. Muito tempo depois ganhei um xerox do único livro do João da Cunha Vargas, Deixando o pago (1981), de meu amigo Guto Silveira, e, de outro amigo, Fausto Domingues, um raro exemplar do livro original. Aí musiquei todos os poemas. As canções que compus com João Vargas se tornaram centrais no Ramilonga e, depois, no délibáb (2010), no qual reuni seus versos aos de Jorge Luis Borges.
Como foi a recepção de Ramilonga na época do lançamento? Tanto do seu público prévio quanto da cena tradicionalista ou da imprensa gaúcha.
A imprensa recebeu bem. No público gaúcho em geral, causou alguma estranheza de início, mas logo gerou muita excitação. Entre os nativistas/tradicionalistas, a recepção oscilou entre admiração e rechaço. Com o tempo, quase todo mundo passou a gostar dele. Muitos artistas se dizem hoje influenciados pelo álbum.
Na minha visão, o Ramilonga redefiniu a imagem que você projeta e a percepção do público sobre você — me corrija se estiver errado, mas me parece que, antes dele, você não era visto como esse cancionista tão ligado ao violão ou à milonga. Como você avalia a importância do disco na sua carreira e na sua imagem?
Tens razão. O Ramilonga foi uma tábula rasa na minha carreira. A partir dele comecei a pensar, cantar, tocar e mesmo a compor como faço ainda hoje. O violão se tornou tão central no meu trabalho que mudou inclusive minha forma de compor e gravar. Comecei a usar violões de cordas de aço. Minha formação é de violão clássico. Trouxe-a para um instrumento em geral tocado com palheta ou dedilhado sem unhas. No Ramilonga, para chegar ao som que eu queria, dobrei o violão com um de nylon. Hoje dobro com dois violões de aço, um de sonoridade mais média e outro mais aberto em agudos e graves. Ramilonga é meu disco mais referido. Ele se ajustou bem à minha imagem de artista de perfil bajo, que mora longe, meio isolado, que faz as coisas a seu modo e é ligado ao sul e à poesia. É tudo verdade.