O Azymuth desenvolveu uma sonoridade muito única, como foi a criação dessa linguagem?
Não tinha um nome para o nosso negócio. Não era jazz puro, era uma coisa misturada, música brasileira com jazz, com muitas tendências. A gente ouvia tudo. Todos da mesma idade, do mesmo ano: 1946. Baby boomers, né? Tínhamos uma formação eclética, com os músicos americanos, e as coisas do Brasil, como Radamés Gnatalli, e os cantores, Cauby [Peixoto], Sílvio Caldas, João Gilberto.
E dessa brincadeira, foi se moldando o swing do Azymuth. Fomos pegando isso tudo e fazendo músicas. Não copiando, nada disso, fazendo coisas que tinham a ver com funk, com progressivo, com o Brasil. Já no primeiro disco. E até alguma coisa cantada, que fomos obrigados pra entrar no mercado do Brasil.
Vocês já acompanhavam outros músicos no início dos anos 1970, mas como foi o momento em que vocês decidiram criar um projeto de vocês?
A princípio foi eu e o Bertrami. A gente era músico da Eliana Pittman. Novinhos, com 20, 21 anos, e já tínhamos acompanhado muita cantora. O Bertrami era sensacional. Grande cabeça, além de ser um músico minimalista maravilhoso. Foi ele que deu oportunidade pra a gente estar aqui até hoje, porque a ideia foi dele: “Vamos fazer um negócio pra gente?”. A ideia era juntar dinheiro, investir em instrumentos, e foi o que a gente fez. Trouxemos instrumentos que estão aí até hoje.
Já tínhamos uma química, né? Mas não era show, era baile. A ideia do Zé foi esta: fazer um baile baseado num conjunto paulista chamado Modern Tropical Quintet. Foi aí que nós chamamos o Mamão e mais uma cantora chamada Fabíola. O início do Azymuth foi esse, tem até um disco [4 Sucessos Volume 2 (1972)], a gente se chamava de Grupo Seleção. E a bateria do Mamão é única. Quando a gente conheceu o Mamão, ele já tocava um rock diferente de todo mundo, porque ele ouviu outras coisas. Não só ouvia rock, ele conhecia muitas coisas.
E como foi essa época?
Fizemos baile, mas nada deu certo. A única coisa era que o pessoal gostava e batia palma. Já era uma prova de que o negócio era bom.
Mas como foi o surgimento do Azymuth mesmo?
A gente lançava muita coisa, não nossa, mas com outros cantores, acompanhando e produzindo. Foi uma época de muita gravação no Brasil, “Disco é Cultura” era o lema, e nós trabalhávamos muito em estúdio e gravávamos juntos. Aí chegou uma hora que a gente falou assim: “Por que não fazer o nosso negócio também? A gente tem música”. O Bertrami, o Mamão e eu tínhamos, e fazíamos músicas juntos.
Aí começamos a ensaiar. No fim de semana, em vez de eles irem pro futebol — eu não, eu fora de futebol —, a gente ia pra casa do Bertrami, que já era o embrião de um estúdio de gravação. Na época, a gente já gravava pequenas coisinhas, até pra jingles, com uma máquina de quatro canais. A gente começou a ensaiar as nossas músicas e fomos guardando.
Como foi a história do nome, “Azimuth” era uma música do Marcos Valle, né?
Que já existia, eles já tinham gravado pra uma novela, Véu de Noiva (1969). Quando fizemos o disco com Marcos Valle, O Fabuloso Fittipaldi (1974), Azimuth na verdade era o conjunto de estúdio. Nesse caso, não podiam colocar o nome de Marcos Valle, que era o autor de todas as músicas, porque o Marcos era contratado da EMI-Odeon [e o LP em questão era da Philips], então botaram o nome de Azimuth.
Mas o Marcos sempre foi um grande amigo, foi uma inspiração até para o nome. É a nossa inspiração. Quando a gente conseguiu o nome, aí a gente consolidou a coisa. Aí começamos a trabalhar no disco. Fomos fazendo em casa, fizemos tanta coisa que saiu até uma colcha de retalhos, que nós tínhamos guardado do estudiozinho do Zé Bertrami, da casa dele, lá em Laranjeiras. A Far Out lançou, e está indo bem, já tem anos. O último disco do Azymuth lançado foi esse [Demos (1973-75) Volumes 1 & 2 (2019)]. Uma coisa de 50 anos atrás.
O disco de 1975 teve a gravação custeada pela banda, como foi isso?
O estúdio original da Polygram era na Avenida Rio Branco, e ia se mudar para a Barra [da Tijuca], mas não estava pronto, e eles tiveram que sair da Rio Branco. E o equipamento da Polygram foi todo para o estúdio Havaí, que era de um amigo nosso, o William Luna, atrás da Central do Brasil. Então, fomos pro estúdio desse amigo. Pra pagar, a gente fez um disco pra ele. Essa é boa, né? Ele era sanfoneiro de música raiz, aí fizemos pra ele. Porque a gente gravava tudo, a gente tocava qualquer coisa.
Você lembra que disco foi esse?
Não sei como era o nome. Mas nós fizemos, pagou o estúdio, e ele ficou feliz.
O LP de vocês saiu com um texto da banda falando que o disco foi feito sem interesse comercial, era isso mesmo?
Não havia interesse. A gente queria lançar o nosso trabalho, queria fazer um disco mais instrumental. A “Linha do Horizonte” surgiu no meio da história. Por quê? Porque a gente era muito amigo do pai do Cazuza [João Araújo, executivo da gravadora Som Livre em 1975]. E aí, na hora que vendemos o disco, sem essa canção, ele perguntou se a gente não gravaria uma música pra novela. “Vamos lançar esse disco então, mas gravem uma música? Tem uma novela que vai sair agora”.
E ele pediu pra colocar voz. Nós já tínhamos uma música de um amigo, o João Paraná, que trabalhava com a gente — fazia de tudo, técnico, secretário, músico — e tinha umas músicas boas. E pedimos ao Paulo Sérgio Valle, que era nosso amigo, pra colocar uma letra. Eles pediram uma música pra aviação, e o Paulo tinha uma letra e encaixou. A princípio seria sobre o mar, mas ele adaptou todinha. Ele era piloto também, por incrível que pareça.
Aí virou a música de trabalho do Azymuth. Entrou no foco, entrou nas rádios. Naquele tempo, a gente tinha uns negócios com rádio também, fazíamos jingles e vinhetas pra uma rádio muito importante, a Rádio Mundial. A gente era os Reis da Vinheta, basta dizer que muitas músicas da gente são vinhetas que a gente fez pra Rádio Mundial.
O disco tem faixas como “Melô dos Dois Bicudos”. que brincam com os lados das caixas de som, vocês estavam pensando o estúdio também como um instrumento?
É o chamado [efeito] panorâmico, né? A gente grava em vários canais até hoje, mas na verdade o final é sempre estéreo. É esquerda, direita e meio. O meio é imaginário, mas existe, está no meio porque está nos dois falantes. O técnico na época era o Ary Carvalhaes, um baixista maravilhoso — super amigo, aprendi muito com ele — e além de músico, era técnico de som.
Foi ideia do Ary Carvalhaes, na hora da mixagem. No final, ele mixou dessa maneira. Nós gravamos em oito canais, era fita de uma polegada. Era uma cacetada. Hoje em dia, essas porcarias de gravação digital não chegam nem aos pés. É a minha opinião, né? Tem gente que adora.
Queria ouvir você sobre o pioneirismo do Azymuth.
A gente estava correndo atrás do instrumento, no Brasil ninguém tinha, muito pouco. A gente viajava pra buscar, antes do Azymuth até. É muito complicado ser brasileiro e não ter instrumentos. Nem tinha nem pensava-se em ter.
A relação de vocês com os timbres eletrônicos começa por aí?
Começa. Antes mesmo do Azymuth, compramos o Rhodes, o Hammond, sintetizadores. A gente guardava uma grana e ia. A gente ganhava bem — graças a Deus e ao “Disco É Cultura” —, aí íamos lá e comprávamos. Junto com Herbie Hancock, Yes, Emerson, Lake & Palmer, somos mais ou menos da mesma idade, da mesma geração. Compramos os instrumentos eletrônicos junto com todo mundo que estava mexendo com isso na época. Todos que estavam mexendo com música de vanguarda estavam na mesma sintonia, na nossa mesma vibe, atrás de instrumentos eletrônicos. Já chegamos no Azymuth, no primeiro disco, com instrumentos eletrônicos, o Arp String, o Rhodes, o clavinet.
Na verdade, a gente ouvia tanta coisa. A gente escutou o Mellotron e: “Pô, a gente tem que comprar esse instrumento”. Chegamos numa loja em Nova York, o cara que era dono da loja passou a ser nosso amigo, aí ele falou assim: “Não, não vai comprar esse troço, não. É muito dispendioso. Tem um tal de Arp String aqui”. Aí vendeu pra gente, aí foi o começo de tudo. Azymuth grava com Arp String no primeiro disco. O Moog a gente já tinha, o Rhodes também. Mas o Arp String foi o grande elo para o Azymuth entrar no mercado com instrumentos modernos.
Como vocês traziam?
Era tudo proibido. Aquilo era o tempo da Ditadura. A única coisa boa da Ditadura era o “Disco É Cultura”, a gente criou nossos filhos fazendo isso. As grandes gravadoras, Philips, não sei o quê, gastavam uma fortuna fazendo disco, e também não fazendo.
Como assim?
Aí era o segredo deles. Não fazia o disco, mas dizia que fazia.
“Disco É Cultura” era uma política de incentivo fiscal, você está falando que elas forjavam discos pra isentar de imposto?
Claro, óbvio. Mas o “Disco É Cultura” foi bom porque nossos filhos cresceram, hoje em dia são médicos, advogados, não sei o quê. Graças ao “Disco É Cultura”.