
Em São Paulo, a porta do clube Madame Satã muitas vezes viu brigas entre a turma punk com os skinheads que iam para a boate puxar briga – os carecas, como eram conhecidos, causavam arruaça e reforçavam preconceitos. Dentro da casa, grupos se misturavam, de João Gordo a Grace Gianoukas, de Cazuza e Caio Fernando Abreu a turma dos Titãs. Provavelmente essa turma se misturava nas madrugadas do Madame para assistir às performances da banda Jardins das Delícias, liderada por Cláudia Wonder. Cantora punk e performer, a travesti fez história com seu show “O Vômito do Mito”.
Em tempos iniciais da pandemia de AIDS, quando o vírus ainda era chamado de “câncer gay” e quando o sangue era motivo de temor, Cláudia se banhava em uma banheira de sangue – ok, era groselha, mas o símbolo estava ali. O tal sangue só aparecia depois de Cláudia surgir de samurai, empunhando espada e tudo; passava pela figura da BatGirl e transitava por canções punks e versões de clássicos undergrounds, como sua versão de “Walk on the Wild Side”, de Lou Reed, transformada em “Vem pra barra pesada”. Tudo isso é o mito – como antevia o título do show.
A diva punk permaneceu na memória de quem vivenciou essa época – e em alguns raros registros. Wonder nunca conseguiu lançar oficialmente um disco de sua fase punk; esse foi um sonho que ela perseguiu durante muito tempo. De todo modo, a performer punk Cláudia Wonder é uma de suas facetas. Atriz, cantora, escritora, ativista, Wonder foi figura fundamental da cultura queer dos anos 80 até sua morte nos anos 2000. Ela passou dos entendidos ao GLS ao prelúdio do que viria a se tornar a sigla LGBTQIA+.
Essa trajetória foi registrada por Caio Fernando Abreu na crônica “Meu amigo Cláudia”, que posteriormente daria título ao documentário de Dácio Pinheiro. Para esse filme, o diretor se aproximou de Cláudia e acabou registrando uma série de entrevistas, muitas delas que acabaram de fora do corte final do longa-metragem.
Das telas para as páginas de uma biografia
Para expandir a memória de Wonder, Dácio lançou o livro Cláudia Wonder – Flor do Asfalto (Ed. Ercolano), em que faz as vezes de organizador, deixando que a voz de Wonder flua e que sua narrativa seja a protagonista. Lançado em caprichada edição gráfica, o livro nos coloca em diálogo direto com as memórias e perspectivas de Cláudia Wonder, com todas as nuances e complexidades de uma personagem que enfrentou barras pesadas praticamente inimagináveis para quem é LGBTQIA+ atualmente.
“Tem muita coisa que não foi usada no documentário. Porque não dá pra colocar tudo num documentário, também. E aí tinha um material inédito, incrível. […] E aí eu falei, bom, isso daria um livro. Até para manter a memória da Cláudia viva, porque às vezes as coisas se perdem, as novas gerações nem sabem da existência da Cláudia, de toda a luta dela para gravar um disco nos anos 80, sem conseguir, e hoje em dia você vê, há um boom de músicos, de cantoras trans, gravando e participando”, conta Dácio Pinheiro.
“Inclusive de seu lado mais ativista. Ela era muito convidada para ir pro Senado em Brasília. Ela foi duas vezes lá representando as travestis. E hoje a gente tem uma travesti no Parlamento. Então é muito legal ver a evolução das coisas.”
Para isso, Dácio escolhe dar voz às próprias memórias e divagações de Cláudia. “O mais interessante é ouvir ela falar; eu fico fascinado com isso. O livro tem o texto do Caio Fernando Abreu, tem alguns sonetos do Glauco Matoso, bem como o prefácio da Amara moira, um texto meu e o posfácio do Neto Lucon. O resto é a Cláudia contando e as sensações delas”.
Lapidação da memória queer de São Paulo
Dácio se classifica como cineasta e produtor, mas podemos dizer, sem sombra de dúvidas, que ele é também um pesquisador ávido de nossa história e memória. Em um país que as memórias são apagadas ou jogadas para debaixo do tapete, Dácio se debruça sobre os personagens mais outsiders ou esquecidos – seja na preservação do legado de Wonder ou mesmo na rica investigação de seu mais recente filme, Lenita, obra incrível sobre a fotógrafa, cineasta e criadora de cavalos Lenita Perroy. “Faz parte do meu trabalho resgatar essas memórias de personagens meio esquecidos ou que não têm muita visibilidade. Na época que fiz o filme da Cláudia, foi o primeiro documentário biográfico de uma travesti. E foi muito difícil de fazer. Foi há 15 anos, mas você vê que era um ainda mais difícil de se ter acesso a fundos para um filme sobre uma travesti”, conta o cineasta.
“Eu acho muito importante resgatar a memória dessas figuras tão importantes que eu acho que precisam ser lembradas. Assim, como a Thelma Lipp, a Rogéria, os Albertos [Alberto de Oliveira e Alberto Camarero], que fizeram um livro da Divina Valéria, que é super legal. […] A internet às vezes faz as pessoas acharem que estão fazendo as coisas primeiro, mas não, teve muita gente que veio atrás abrindo portas. A Cláudia mesmo batalhou muito para gravar um disco. E quando eu conheci ela no início dos anos 2000, era de novo o foco dela. E ela conseguiu só em 2007 [o disco “Funky Disco Fashion”, ao lado do The Laptop Boys]. Depois de muito custo, depois de muito tempo, ela conseguiu lançar o disco dela. Mas é uma pena que não tenha gravações incríveis da época dos anos 80, sabe?”.
Além disso, o diretor relembra como a preservação dos acervos, bem como o acesso a esses acervos, ainda é uma dificuldade no Brasil. “Fazendo o ‘Meu amigo Cláudia’ a gente se deparou com muita coisa que você sabe que existia material, mas não foi guardado direito, ou se perdeu. Tinham cenas que a gente usa no documentário do programa do Kid Vinil, por exemplo, que a TV Cultura tinha apagado as fitas. Então, o último registro que tinha era o que a própria Cláudia tinha gravado da TV com uma qualidade meio ruim. O mesmo aconteceu com material da Gazeta que tem no filme. Então, é muito importante preservar a memória. Eu vejo que agora tem uma turma nova fazendo restauro de filmes, como o pessoal do Cine Limite e isso é fundamental”, conclui Dácio.
Pensar a memória das mídias é algo fundamental: a internet criou a falsa sensação de que tudo o que existe está on-line, mas a realidade é que até mesmo o que agora a pouco estava on-line já desapareceu em alguma atualização ou em algum back-up perdido. E o que sobra do passado pré-internet? Ainda mais quando falamos em histórias do underground e personagens à margem. Precisamos resgatar e recontar essas histórias e precisamos de outros Dácios para que isso continue reverberando.
Precisamos de gente apaixonada por história e por acervos – e, mais que tudo, precisamos de incentivos para que essas pessoas trabalhem. Quando revisitamos a história de Cláudia Wonder, de algum modo, revisitamos uma estrada pavimentada que impulsionou e incentivou uma série de outros nomes. Catto, Linn da Quebrada, Veronica Decide Morrer e tantas outras caminham nessa estrada aberta e é bonito que possamos enxergar todas as paradas desse trajeto.
De PJ Harvey a Maysa, Catto se rende ao rock e ao drama em novo disco
No final das contas, Cláudia Wonder – Flor do Asfalto é um vislumbre de uma figura inventiva, ousada e a frente do seu tempo. Cantora punk, ativista queer, multiartista, performer de spoken word ou ainda pensadora livre, Cláudia Wonder foi tantas e é importante que sua história seja uma fagulha para que se repense em outras histórias de figuras LGTBQIA+ fundamentais que abriram caminhos – especialmente pessoas trans que acabaram ficando à margem da história.
“Claudia Wonder – Flor do Asfalto”, Dácio Pinheiro, Editora Ercolano, 184 páginas.
“Meu amigo Cláudia”, Dácio Pinheiro, 2009, disponível gratuitamente no Mix Brasil Play.