Comparando aos anteriores, você traz mais reflexões sobre a dimensão do amor nesse disco, é a documentação de um processo?
Totalmente, mas a minha carreira como um todo é um processo. Comecei cedo, então já aceitei que meu processo, tanto musical — de evolução, de melhora, de estudo — quanto de identidade, ele é aberto. Por mais low profile que eu seja, artisticamente é um processo aberto na medida em que eu tenho 25 anos e já tenho três discos, tenho entrevistas desde os meus 18 anos, com pessoas falando coisas certas e coisas erradas, e eu falando coisas que eu gosto e que eu não gosto. Então, aceitei um lugar de work in progress na minha carreira e na minha vida. O que é ruim e bom ao mesmo tempo, às vezes eu gosto, às vezes eu não gosto.
E é um disco que fala sobre mim mesmo. É engraçado, o disco que tem menos composições minhas é o disco que talvez fale mais sobre mim mesmo. Mas tem a ver com o processo de poesia. Eu tenho uma coisa na minha poesia que tem muito a ver com a poesia que fala do mundano, que retrata a praça como a praça é agora, que, em alguma medida, relata e fixa elementos ordinários no nosso tempo de uma forma histórica. No Little Electric Chicken Heart (2019), por se referenciar tanto na nostalgia musicalmente, poeticamente eu fazia questão de atualizar, de trazer elementos que falam de agora, que não são dos anos 1950. E aí esse disco ele já deu o caminho para outros tipos de poesia mesmo.
Você vê diferença, no processo de composição, quando lida com sentimentos reais teus, íntimos, em relação à elaboração de situações externas a ti?
É diferente. Quando falo sobre mim, surge num lugar introspectivo. O lugar de poesia ordinária vem de eu estar aqui olhando a ponte [Rio-Niteroi, onde estávamos passando de van], a gente aqui, pensando no carro, no asfalto, e aí eu vou anotar alguma coisa. Vem neste lugar de sair, ouvir, estar fora e anotar, e depois reunir, e depois musicar. Em processos mais íntimos de poesia, costumo estar sentindo algo, e aí sair enquanto eu tô tocando.
Sobre o conceito queer do disco, pegando o termo no sentido mais amplo, a questão da divergência está expressa nas letras e no visual, mas o disco também traz uma reflexão sobre sonoridades divergentes.
Totalmente.
Ainda tenha um apelo pop, está longe da sonoridade hegemônica nas rádios, por exemplo. Como você vê isso?
É, eu vejo de uma forma intuitiva e natural. Comecei falando poeticamente sobre um assunto, depois entendi que musicalmente isso pode ser citado e muito refletido também. Mas é de uma forma verdadeira e tranquila, sem pensar tanto. Não é um disco tipo: “O que é ser não binário no Brasil hoje”. É isso, mas eu não pensei ele de uma forma muito identitária. E eu não tenho nenhum objetivo de que esse disco entre numa caixa, isso não tem a ver com ele.
A identidade vem como reflexo e como desejo de que tenha essa contribuição principalmente esteticamente. Mas eu não fiz e nem penso em divulgar ele de uma maneira “bíblica”. Acho que é só uma de mil possibilidades do que seria uma identidade não binária, por exemplo. Inclusive porque relata uma baita confusão. O título é confuso, ele fala de confusão.
É o disco que mais fala sobre você, mas é também o que tem menos composições só suas, e é o único que não traz você na capa. Tem esses jogos, né?
Total. Aí eu acho que o assunto vai predominar, e o título, né? O título é sempre uma coisa que carrega o símbolo do que a gente tá querendo dizer, e o título foi uma coisa que veio primeiro no álbum.
Sobre a sonoridade ainda, você trouxe mais o eletrônico nesse álbum. Como você buscou jogar e equilibrar isso com o universo orgânico?
Ao contrário do LECH, que tem uma sonoridade muito específica, neste disco eu queria que tivesse uma mistura. Um terço das músicas era uma referência de caixa dos anos 1970 com processamento dos anos 80, mas com mais punch, com closes. Mas em “Let’s Go To Before Again” e “Debaixo do Pano”, eu usei a caixa do 808 [drum machine TR-808] e também botei um gate reverb.
Então, o disco todo é uma mistureba das coisas que eu realmente ouço. O Mormaço é um desabafo, uma coisa impulsiva, que vai ter a ver com outros processos muito mais do que com o que eu acho que é um fonograma. Sei lá, era um primeiro álbum. Eu não sabia o que eu queria, nem queria fazer música. Já o LECH é uma pesquisa. E eu acho que o MCDGQESS fala sobre mim musicalmente mesmo.
Eu ainda me baseio muito no orgânico e coloco o eletrônico como um tempero — à exceção de “Let’s Go…” e “Debaixo do Pano” —, porque onde eu tenho mais aprofundamento tem a ver com o trabalho orgânico, como instrumentista de guitarra e de piano, de pensar muito o som da bateria, de ter desejo de forçar um pouco a barra dentro da instrumentação orgânica. Mas acho que o futuro é essa mistura. Talvez às vezes mais eletrônica do que orgânica, mas com elementos orgânicos, e às vezes mais orgânica do que eletrônica. O futuro seria essa mistura tanto esteticamente musical quanto esteticamente visual.
Você tem estudado o eletrônico, é uma coisa que gostaria de aprofundar?
Sim. Eu gosto muito de drum machine, de sintetizador, de programar, de mexer na DAW [“Digital Audio Workstation”, como se chamam os softwares de gravação e edição]. Estar ali nas coisas. Então sim, eu tenho muita vontade de me aprofundar mais.